2006-12-29
viagem ao fundo do tempo
hoje os ursos não dançam. é terrível, eu sei. acordar ainda ser de noite e todos os bichos hibernarem dentro das passas. um beijo causar um sopro de lepra ou a traição das células benignas. antecipar o frio de janeiro na barriga das mães e o peso dos fetos mortos em fevereiro. guardar a placenta da manhã dentro de um frasco oxigenado e ser paciente. apertar o cinto não vá portugal cair ao mar e milagre! transformar-se num barco ainda mais imóvel. em março prevê-se um aumento da tensão mamária no segundo andar de todos os edifícios. e não há portas giratórias nem frutos que resistam secos à tortura dos homens. o coelho de abril é um pirata de chumbo armado de boas intenções. vem camuflado no interior de um ovo de onde nascem as andorinhas. as flores de maio são de uma espécie nobre que seduz as abelhas. em junho dá-se a ejaculação do pólen e reforça-se a confiança dos portugueses com azeite virgem. antes do verão já há fogos e milhares de hectares de tragédia. hoje os ursos não dançam. é inverno e julho arde no horizonte. dai-me senhor um mar de agosto e um par de luvas que se converta em pombas. deixai os velhos morrer de branco e as crianças irem para a escola em setembro. impede as mulheres de casar em outubro e manda-as vir ter comigo se reclamarem. seca a chuva de novembro em cada lágrima e inventa outro natal menos careca. agora tenho de ir tentar ser feliz. adeus.
(fotografia de fernando figueiredo)
2006-12-26
confidência
estou aqui sentada
à espera das palavras
que irei pronunciar
das gélidas montanhas de vinil
poucas foram
as que verteram cabelos
das paredes lisas
os livros falam entre si
e trocam cartas
do que ouviram dizer
entre as páginas
lembras-te quando ao meio dia
atravessava a tua boca
até ao tecto das águas?
a cidade tem um rio longe de tudo
longe de ti a memória de um beijo
pelas mãos acima devagar
fecundam as terras do teu rosto
dançam na berma dos teus lábios
os teus gestos claros
como versos bocejando azuis
na ferida das horas
(desenho de kafka)
2006-12-23
2006-12-21
a barriga de moloi
ao fundo do meu corpo
nas curvas da cidade deslumbrada
fora do jardim está a velha infância
do outro lado da gruta abandonada
quando aqui perto o pó agita o soalho
*
(título de lee yutao, quadro de cezanne)
2006-12-20
eu no "lugar aos outros"
agradeço ao luís gaspar do estúdio raposa por ter declamado online a minha poesia. muito obrigada. bem haja.
*
(fotografia de leolima)
para o frog
acaba de me ligar o meu amigo albino santos. foi das primeiras pessoas que conheci através da blogosfera. em pessoa o albino é uma extensão do que sempre mostrou online. à mesa de um café tremiam-lhe os dedos enquanto me mostrava em primeira mão os poemas do seu último livro ainda em versão não editada. foi com a mesma emoção que me ofereceu um exemplar do gotas de luz e disse que a capa era parecida comigo por ser uma mariposa. fomos juntos a saraus de poesia e outros eventos literários onde conheci pessoas que até hoje me ajudam a crescer interiormente. estive recentemente na apresentação do diálogos de sombras que li ainda antes de ser publicado. o albino é para mim uma referência de que a blogosfera é um meio onde podem começar relações preciosas para a vida. a outra voz era o nome do blog do frog. bem hajas, al *
O sentimento é cego
albino santos
*
(fotografia de alba luna)
2006-12-19
agradeço mais um poema do josé félix
como é fugaz o tempo
no entanto se fez dia
e a noite foi com ela
beber a maresia
ela e a noite gémeas
rindo à beira da margem
com as lésbias carícias
alegram a viagem
pulam dançam estroinam
calam palavras visas
gazelas em ciovão
rodando a cerviz
acoitam-se na árvore
muito aconchegadinhas
lambem cheiram e cantam
histórias de modinhas
de repente fez dia
e sobre a erva erma
o cheiro a aloendro
misturado no esperma
sozinha sem parceira
foi-se a gazela embora
o gamo foi com ela
e ela agora chora
a moral da história
tire-a quem a quiser
seja gamo ou gazela
conforme lhe aprouver
autor: josé félix
2006.12.19
(fotografia de jorge orfão)
dedicado à aliece
ela é a primeira a se abrir
emite sinais para o universo
não sei se ela sorri
autor: chi kung for beautiful ladies
(fotografia de filomena chito)
2006-12-18
geometria descritiva
alice
*
de ti nunca esquecerei
*
o teu colo
*
bebo-te sem tento
*
(quadro de amadeu souza cardoso)
2006-12-17
um lugar puro
recebi uma orquídea dentro de um vaso. nunca mais poderei dizer que vivo sózinha. a amiga que ma ofereceu. estava a pesquisar os autocarros. e mandou-me um regulamento. há coisas assim. durante todo o tempo da gravidez. os meus pais pensaram que eu era um rapaz. ia chamar-me josé miguel. no dia do parto não houve grande imaginação. e ficou o nome da mãe. bem haja a falta de inspiração. mas era preciso escolher outro. houve alguém que me chamou laura. quando isso aconteceu. fiquei muito doente. depois apagou tudo. mas nunca recuperei. o melhor a fazer à ironia. é transformá-la numa homenagem. cura instantânea. fica o nome imortalizado. n' a tradução da memória. função do que escrevo. e título para o efeito. eis um segredo lacrado. por correio registado. isto a propósito do insólito. ontem fui ao lançamento de um livro. o apresentador era o autor. o local uma capela. uma palavra linda para um sítio extraordinário. estive na Casa de Deus a ouvir poesia. foi único e maravilhoso. agradeço à bárbara. tenho um Oráculo autografado para ti. à minha mãe o nome igualzinho ao meu. ao alberto o heterónimo pronto a usar. e ao José Rui Teixeira pela ideia genial. da poesia à cappela.
*
Quando eu era criança anoitecia
sobre a verdade intrínseca de haver ruas
pequenas e horizontes pequenos no fundo
das ruas. Os velhos sentavam-se na soleira
das portas nas noites de verão e as raparigas
sangravam demoradamente o calor
para dentro dos pulmões e cresciam-lhes
os seios, e fechavam-se em casa. Quando eu
era criança a minha mãe pousava na superfície
do outono como um anjo ferido
autor: José Rui Teixeira
Oráculo, Edições Quasi
*
(fotografia de roxana afonso)
2006-12-15
dor sem rosto
*
(fotografia de frederic gailard)
2006-12-12
a mulher invisível
adoeceste-me.
apetece-me escrever a palavra sossego. mas sei que não faz efeito nenhum.
penso no nosso primeiro encontro. no alto de uma livraria. e atravesso o mais longo beijo. até à tua sombra.
o ar cái sobre a nossa cama. sobre os lençóis demorados das tuas pernas. e dói. dói estar fora de ti e respirar.
lembra-te que o teu corpo. já antes havia encostado ao meu. como um navio. e nunca mais fomos inteiros.
lembra-te que nos extinguimos. um no outro. como água que corre lenta. numa só língua quente. e nunca mais morríamos.
enquanto fechavas o teu corpo. dentro do meu. e derramámos os lábios. para dentro das nossas bocas. não escurecia. bebias todo o veneno. sem saberes o meu nome.
e as estrelas. lambiam a ponta dos dedos. para respeitar. o silêncio da tua voz. para respeitar. a queimadura da nossa solidão.
eu sei que não gostas que chore sem ti. eu sei que um dia. as árvores por onde passámos os dois. serão cinza e perda. e começo a andar. demoradamente. para conhecer todos os lugares. de onde partiste.
enquanto os vidros fumam a nossa transpiração.
*
2006-12-09
o homem invisível
eu gostava de dedicar este post a um desconhecido. mas não tenho coragem. ele veio aqui deixar um poema. talvez seja o único que aqui se publicou. e falou de deisy. mas eu vivi demais esses dois dias. e agora teria de morrer. antes de falar. vou dar um exemplo. durante meses eu li diálogos. era bom. mas faltava algo. aí eu conheci o autor. quando ele sentou a meu lado eu disse. tem olhos bonitos. e ele perdeu a garrafa de água. deixou cair o mar. é a vida, entende? você vai ao ballet e as moças fazem ondas. há quem chore a guitarra por ciúme do abraço. há quem molhe os pés na trovoada. há quem prefira o elevador. e é diferente. há versos nos degraus. através do vidro. o poema sobe. enquanto desce. toma uma bica enquanto finge. o sangue está sendo derramado na sala ao lado. mas você repara nas lâmpadas. usa a desculpa do tecto. para abrir o portátil. toma boleia com uma estranha. porque serralves merece. sem saber. vai a um recital de piano. sentir florbela espanca. na voz das sopranos. sem querer. abandona sua condição de leitor. o diálogo é uma cena de corpo presente. de repente percebe o amor. e reconhece a errância. a proveniência da solidão. ao escuro de uma noite. e tem pavor. entra em pânico. e sai de cena. evita o nuno júdice. é óbvio que fica triste. afinal é humano. procura adivinhar o que ele disse. e compra um livro. na esperança da serenidade. dedica um post. na tentativa de agradecer. sabe que não consegue. é impossível deixar cair o mar. é impossível escrever uma tempestade. ouve o piano tocando a guitarra chorando o vento assobiando o granizo batendo a florbela espancando e foge. o destino é a casa a casa é a madrugada. tenho frio estou cansada e sei que vou morrer. até amanhã, medo. até amanhã, moça.
*
(fotografia de berenika)
2006-12-06
a vapor do tempo
esta semana tem sido uma tábua de engomar. ontem fui ao teatro. estava lá uma menina da telenovela. e um menino que parecia um sol. o homem do meio despiu-me. pela cana do nariz acima. tinha lentes grossas. por cada dioptria. que via a menos para fora. via a mais para dentro. isto baseada na teoria. que a miopia é um mal. que veio por bem. ver pior ao longe. para ver melhor a alma. eu só pensava na isabel. levava o piano no bolso. pronto a tocar. mas falhei uma ou duas teclas. depois veio o bobo. do alexandre herculano. e eu que sou disléxica. não pronunciei o mosteiro. agora cante. eu? o sol brasileiro sorria. a actriz que fez de vilã fez de boazinha. e o homem do meio pegou em mim. nuinha no meio do palco. e passou-me a ferro. como é que se faz. para ter o teatro. dentro dos óculos?
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(fotografia de autor desconhecido)
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hoje recebi flores. é a segunda vez. em muito pouco tempo. e faz rugas. oxalá encontre o homem dos efeitos especiais. numa esquina da arte. boa noite, isabel
2006-12-05
os seios de adélia
a partir de hoje vou relatar os casos mais pertinentes deste consultório. ao abrigo da ética deontológica. todos os nomes apresentados. são pouco ou nada ficcionados. a primeira paciente de que irei falar. não convive bem com a ternura dos seus quarenta e poucos anos de idade. é uma mulher casada mas o seu problema não é o marido. é o amante. logo na primeira consulta fez questão de me mostrar o peito. como é que possível, doutora? ele só me quer por causa das mamas. eu faço tudo tudo tudo e nada adianta. é uma fixação doentia, não acha? vamos por partes, adélia. quando diz que faz tudo refere-se exactamente a quê? a última vez que saí com ele. quando estávamos a jantar. levantei-me e fui ao toilette tirar a tanguinha. quando voltei a sentar-me. entreguei-lha por baixo da mesa. foi muito embaraçoso. mas isso é fantástico. adélia. dou-lhe os meus parabéns. e qual foi a reacção dele a uma iniciativa tão arrojada? pediu-me que desapertasse os botões da blusa. para comer o meu decote com os olhos. mas isso é muito positivo, adélia. estabeleceram um jogo de sedução. como é que acabou a noite? eu que até tinha nojo, doutora, fiz-lhe sexo oral. diga-me uma coisa, adélia. quando está a praticar o felatio, entala bem a língua entre a glande e o prepúcio?
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(fotografia de jacek pomykalski)
2006-12-04
manual de caligrafia
hoje é amargo. houve dias assim antes. apagava a luz e via. blocos de gelo com sinais vermelhos. a piscar na escuridão indesmentível. houve dias eternos. dias gigantes e efémeros. e dias inutéis. quando me escreveste. há muito tempo atrás. eu não sabia ler. dezembro era uma miragem. do pico do verão. o luar de agosto chorava. no céu branco do amor. abrir uma carta era um fôlego de reposteiro. deixar o sol entrar. no idioma enclausurado. dentro do coração. a noite era um livro indecifrável. tinteiro entornado a verter estrelas. nos pôros do papel. e só o lume traduz. a caligrafia da pele.
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(fotografia de francisco cardoso)