2006-12-17

um lugar puro





recebi uma orquídea dentro de um vaso. nunca mais poderei dizer que vivo sózinha. a amiga que ma ofereceu. estava a pesquisar os autocarros. e mandou-me um regulamento. há coisas assim. durante todo o tempo da gravidez. os meus pais pensaram que eu era um rapaz. ia chamar-me josé miguel. no dia do parto não houve grande imaginação. e ficou o nome da mãe. bem haja a falta de inspiração. mas era preciso escolher outro. houve alguém que me chamou laura. quando isso aconteceu. fiquei muito doente. depois apagou tudo. mas nunca recuperei. o melhor a fazer à ironia. é transformá-la numa homenagem. cura instantânea. fica o nome imortalizado. n' a tradução da memória. função do que escrevo. e título para o efeito. eis um segredo lacrado. por correio registado. isto a propósito do insólito. ontem fui ao lançamento de um livro. o apresentador era o autor. o local uma capela. uma palavra linda para um sítio extraordinário. estive na Casa de Deus a ouvir poesia. foi único e maravilhoso. agradeço à bárbara. tenho um Oráculo autografado para ti. à minha mãe o nome igualzinho ao meu. ao alberto o heterónimo pronto a usar. e ao José Rui Teixeira pela ideia genial. da poesia à cappela.

*

Quando eu era criança anoitecia
sobre a verdade intrínseca de haver ruas
pequenas e horizontes pequenos no fundo
das ruas. Os velhos sentavam-se na soleira
das portas nas noites de verão e as raparigas
sangravam demoradamente o calor
para dentro dos pulmões e cresciam-lhes
os seios, e fechavam-se em casa. Quando eu
era criança a minha mãe pousava na superfície
do outono como um anjo ferido




autor: José Rui Teixeira

Oráculo, Edições Quasi


*



(fotografia de roxana afonso)

6 comentários:

batista filho disse...

voltaste... e contigo o amor pelas palavras.

disseste de uma orquídea-espanta-solidão que ganhaste... que bom! fico feliz por ti, pela orquídia... tadinha da solidão!

lembrei de algo... tenho também uma plantinha, mas não sei qual o nome, porque...

no meu vaso
quintal raso
um botão
que nunca chega a flor...

uma beijoca fraterna.

isabel mendes ferreira disse...

um lugar "santo"


__________________


puríssimo.


_________________beijo Li.

Anónimo disse...

"Ao escrever sobre o que sentimos acabamos por vezes a sentir o que escrevemos porque o escrevemos. Explico-me. Às vezes, escrevem-se coisas porque vão umas com as outras, porque rimam significados ou simplesmente ficam bem. Porque as palavras procuram outras de uma certa maneira irrecusável. E depois já está. As palavras possuem esse poder de moldar o que a mão ao escrevê-las queria dizer. Escrever não é um acto de um sentido só, uma espécie de rua de sentido único entre o que temos dentro e o que aparece de fora, escrito. Este «de fora» que parece ser a escrita, se molda o que depois ao ler sentimos, é porque está ainda «de dentro». Mas às vezes o cansaço apodera-se de nós, e temos vontade de parar. Não sei se de escrever se de sentir, possivelmente de estar sempre a pensar nisso. Parar: vontade de fechar os olhos e ver."

Dylan Thomas

Anónimo disse...

"Só uma coisa é necessária: a solidão ... E o seu crescimento é doloroso como o das crianças e triste como a ante-primavera. Caminhar em si próprio e, durante horas, não encontrar ninguém, a isto é que é preciso chegar..."

[Rilke, in Cartas a um Poeta]

Anónimo disse...

Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer da magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas - podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia - e essa é a verdade - cresce sempre
apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti.
E a flor que te estendo,mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão.


Daniel Faria


Do livro "Dos Líquidos"
In Anos 90 e Agora, Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa
Edições Quasi, Vila Nova de Famalicão, Maio de 2001

Melga do Porto disse...

Perante o nascimento, tudo é tão real que a imaginação se esgota.
De tal forma que o “imaginado” José Miguel, passou a ter o nome da mãe.
Porquê?
Porque uma orquídea tomou, no real, o seu lugar.
Quem se lembra hoje do José Miguel?
Ninguém!
Porquê?
Porque a orquídea, bem real, invadiu a imaginação!
Bj´s