2006-12-19

agradeço mais um poema do josé félix




como é fugaz o tempo
no entanto se fez dia
e a noite foi com ela
beber a maresia

ela e a noite gémeas
rindo à beira da margem
com as lésbias carícias
alegram a viagem

pulam dançam estroinam
calam palavras visas
gazelas em ciovão
rodando a cerviz

acoitam-se na árvore
muito aconchegadinhas
lambem cheiram e cantam
histórias de modinhas

de repente fez dia
e sobre a erva erma
o cheiro a aloendro
misturado no esperma

sozinha sem parceira
foi-se a gazela embora
o gamo foi com ela
e ela agora chora

a moral da história
tire-a quem a quiser
seja gamo ou gazela
conforme lhe aprouver


autor: josé félix
2006.12.19


(fotografia de jorge orfão)

5 comentários:

Anónimo disse...

é maravilhoso viver numa metáfora!

pilar del rio, ontem à noite, no programa por outro lado, na dois, em entrevista com a ana sousa dias

Anónimo disse...

Bons escolhas de poesia.
Gostei deste cantinho.
Voltarei.
Desejo um Santo Natal, e que 2007 chega melhor.

{{coral}}

Anónimo disse...

" (...) Que pensar de tudo isto? Em primeiro lugar, que a vida está má para os pobres. Depois que, nisto ou naquilo, vivemos todos muito ocupados, inclusive na falta de ocupação. Por último, que enquanto, pela parte que me toca, passo o tempo, como agora e aqui, a acariciar o meu dilatado egozinho e a fornecer de mim imagens razoavelmente aliciantes, como estas, existem pessoas bem mais obscuras que, discreta e devotadamente se vão ocupando de mim e do meu glorioso destino o que, aliás, não é novo. Parece que tem sido uma constante da História. Assim sendo, resta-me reconhecer a solidão moral de uma prática cinematográfica cavada na dupla recusa de ser uma espécie de carro de aluguer da classe mais favorecida e, o que é mais grave, de trocar essa profunda exigência por toda e qualquer forma de demagogia neo-fadista que transporte e venda a miserável ilusão de servir outra coisa."



"A Minha Certidão"
JOÃO CÉSAR MONTEIRO
in Revista &ETC, Nº 8, 30/IV/1973, pag. 19

Anónimo disse...

Gostava de vos dizer uma coisa para terminar.



Às vezes tenho medo, muito medo.

Às vezes sofro.

Às vezes, penso nas pessoas que amo e penso na possibilidade de as perder.

Às vezes vejo alguém doente e fico incomodado.

Pode não ser um amigo ou um familiar.

Posso estar a vê-lo pela primeira vez.

Mas fico incomodado.

Aquela doença pertence-me.



Todas as doenças pertencem a toda a gente.

Todos os sofrimentos pertencem a toda a gente.

Todas as mortes pertencem um pouco a toda a gente.

Às vezes sinto isso muito,

outras vezes sinto menos.

Quando sinto menos posso preocupar-me com o mundo, brincar com a poesia, com a filosofia e com as palavras.

Mas quando sinto, deixo de conseguir pensar.

Quando sofro ou sinto o que alguém sofre, deixo mesmo de querer ser inteligente.

Deixo de querer parecer inteligente.

Se estivermos cheios a sentir, não temos espaço para pensar.

Não fazem sentido as lógicas, as filosofias, as discussões.

Todo o nosso corpo sente.

E o que resta? Nada.

Só existe aquela morte, aquela doença, aquela velhice.

Só aquele pai que amo e está a envelhecer. Só aquela mãe que amo e está a envelhecer.

Só aquele amigo que morreu num estúpido acidente.

Só aquele amigo que se tornou amargo porque a mulher o deixou.

Só o amor e a falta de amor.

As mulheres que nos enganam e as mulheres que são enganadas, as mulheres e os homens que enganam.

Os amigos que deixam de o ser, alguns inimigos que morrem, e temos pena.

Que importa o resto?

Onde está o livro importante?

O filme que resolve?

Podemos chorar à frente de um quadro, mas não resolve nada.

Podemos pintar um quadro, escrever um poema, mostrar às mulheres bonitas como somos bonitos, exibir o nosso corpo, mas que adianta?

Estamos sozinhos.

Se não estamos, vamos estar.

Os amigos vão-nos deixando, vão-nos deixar.

Vão morrer ou nós vamos morrer.

Ou então deixam de nos telefonar, ou então deixamos de lhes querer telefonar.

Estamos sozinhos. As pessoas que amo vão morrer.

Os livros não resolvem nada. A poesia é bonita e por vezes descansa, acalma, mas não resolve nada, não resolve nada.

Somos artistas ou não somos, e qualquer coisa que seja não adianta nada e nada impede.

Escrevemos poemas, mas não ajudam ninguém.

Escrevemos peças de teatro, sorrimos, tentamos pensar, tentamos ter ideias, tentamos distrair as pessoas, tentamos fazer pensar as pessoas, tentamos fazer chorar as pessoas, e isso é bom, e até pode ser bonito, mas não adianta nada, não resolve nada,

não adianta nada.






in Gonçalo M. Tavares, O homem ou é tonto ou é mulher.

Porto: Campo das Letras, 2002. pp. 74-76

Anónimo disse...

A POESIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA,

UMA «AVENTURA DA LINGUAGEM»





Na viragem da década de 50 para a de 60, a poesia portuguesa consciencializa, explicita e leva ao extremo um processo que vinha tomando forma, na produção de poetas oriundos de áreas diversas, desde os anos 40 ou mesmo desde a segunda metade da década anterior.

Tratava-se de devolver ao poema a sua densidade de artefacto de palavras, a sua materialidade, a sua natureza de texto, de objecto construído como uma finalidade, em si, e não como simples veículo de mensagens ideológicas ou confessionais.

A revista Presença (1927-1940) começara por querer lutar contra a «literatura livresca», mas, independentemente dos méritos que possamos reconhecer-lhe, sobretudo pela divulgação do que era, quer no estrangeiro, quer em Portugal (Fernando Pessoa, nomeadamente), a verdadeira literatura moderna, acabara impondo um modelo de poesia que representou um autêntico compasso de espera entre o fulgor das poesias de um Camilo Pessanha, um Fernando Pessoa, um Mário de Sá-Carneiro, e aquilo que os melhores poetas das gerações posteriores à dos presencistas iriam trazer-nos, precisamente a partir de 1940, sintomaticamente o ano em que a Presença cessa a sua publicação. E se, curiosamente, procurarmos o que mais vivo nos resta da produção poética da década de 30, é (talvez com as excepções de um Casais Monteiro e de um Saúl Dias) em obras de poetas situados nas margens da Presença, como Vitorino Nemésio (O Bicho Harmonioso, 1938), Irene Lisboa (Um Dia e Outro Dia, 1936) e Edmundo de Bettencourt (Poemas Surdos, escritos entre 1934 e 1940), que vamos encontrá-lo. Que a atenção dada à materialidade do poema, a que me referi, nada tem a ver com formalismo, entendido como jogo de formas que em si mesmo se esgota, bastaria a obra poética de Irene Lisboa para o demonstrar, pois, ao assumir-se contra todas as convenções poéticas («Ao que vos parecer verso chamai verso e ao resto chamai prosa» escreve a autora na entrada do seu segundo livro de poemas, Outono Havias de Vir, de 1937), ela cria um dos tecidos estilísticos mais consistentes e originais da poesia portuguesa deste século.

É tempo de regressar àquela viragem entre duas décadas de que falei logo no início. Porque aí se situa, por um lado, o aparecimento de alguns dos principais nomes que definiram o rumo que a poesia iria tomar, em Portugal, a partir de 1960, e, por outro, porque é nesse mesmo momento (entre 1958 e 1961, mais precisamente) que o trabalho, iniciado antes, de outros poetas, como Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Carlos de Oliveira, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, David Mourão-Ferreira, vem confluir com as preocupações da jovem poesia, no que diz respeito à revalorização da palavra como elemento fundador do poema. Livros como Fidelidade (1958) de Sena, Mar Novo (1958) de Sophia, Cantata (1960) de Carlos de Oliveira, Mar de Setembro (1961) de Eugénio de Andrade, O Grito Claro (1958) de Ramos Rosa, nomeadamente, não apenas denotavam o fascínio dos seus autores pelo poder de cada imagem, como, de modo mais ou menos explícito, teorizavam, em vários poemas, sobre a matéria de que eles são feitos, as suas unidades de sentido, as palavras, cuja definição acaba por fundir-se, ou confundir-se, com o próprio conceito de imagem; como escreve Carlos de Oliveira: «As palavras/cintilam/na floresta do sono/e o seu rumor/de corças perseguidas/ágil e esquivo/como o vento/fala de amor/e solidão:/quem vos ferir/não fere em vão,/palavras.» O tema das palavras faz, por esta altura, a sua entrada dominadora na poesia portuguesa. Simultaneamente, elas surgem com uma força própria, dispensando a inserção na rede do texto ou afrouxando os seus elos, adquirindo uma autonomia cada vez maior: «Passo e amo e ardo./Água? Brisa? Luz?» (Eugénio de Andrade, Mar de Setembro, 1961); «E certas palavras prazer/ mágoa água plenitude? (António Ramos Rosa, Voz Inicial, 1960); «Procurei-me na luz, no ar, no vento» (Sophia, Mar Novo, 1958). Mesmo quando o isolamento vocabular não é total, cada palavra como que ganha luz própria – que é, de resto, o normal da poesia e sempre nos melhores poetas acontecera, chamassem-se eles Camões, Nobre, Cesário ou Pessanha.

Estamos, pois, perante uma revitalização da palavra poética, a que não é igualmente estranha a obra de poetas que, reclamando-se embora do surrealismo, se afirma, nos anos 50, já não como surrealistas puros (o que seria, aliás, impossível, mais de duas décadas depois de o movimento ter eclodido em França), mas como autores de obras em que a herança do surrealismo se cruza, em sínteses profundamente originais, com outras linhas e tradições, em que avulta aquela que, no contexto da poesia portuguesa, passa por Cesário Verde e Fernando Pessoa. Refiro-me, naturalmente, a Alexandre O’Neill e a Mário Cesariny («Entre nós e as palavras há metal fundente/entre nós e as palavras há hélices que andam/e podem dar-nos a morte violar-nos tirar/do mais fundo de nós o mais útil segredo/entre nós e as palavras há perfis ardentes/espaços cheios de gente de costas/altas flores venenosas portas por abrir/e escadas e ponteiros e crianças sentadas/à espera do seu tempo e do seu precipício», Pena Capital, 1957).

Penso que a tendência geral que acabo de esboçar e que, nas novas gerações que despontam por volta de 1960-1961, tem os seus representantes máximos em Herberto Helder (A Colher na Boca, 1961), Ruy Belo (Aquele Grande Rio Eufrates, 1961), Fiama Hasse Pais Brandão e Luiza Neto Jorge, estas duas últimas pertencentes ao grupo que se reuniu na publicação colectiva Poesia 61, está bem caracterizada no título do livro de ensaios de António Ramos Rosa, de 1962, Poesia, Liberdade Livre. Ramos Rosa fora, de resto, desde os tempos em que dirigiu a revista Árvore(1951-1953), nela deixando vasta e importante colaboração, o grande defensor de uma poesia concebida com base na plena liberdade da imaginação, na recusa dos ditames de uma lógica extra-poética, na justificação do hermetismo, como garante da especificidade da arte poética moderna: «A primeira coisa por que devemos lutar é pela confiança nos destinos da poesia, que nós confundimos com o próprio destino do homem. Um dos maiores perigos que ela hoje enfrenta (perigo aliás necessário, pois sem perigos não há aventura poética) é o que podemos chamar a aventura da pobreza poética, a tentativa de criar uma linguagem onde a poesia cintile em cada palavra, em cada imagem, em cada verso. O seu hermetismo, que se combate superficialmente, é muitas vezes o nome que se dá à densidade, à riqueza, à liberdade, à imaginação ou à fantasia; numa palavra, ao especificamente poético.» («A poesia é um diálogo com o universo», Árvore, vol. II, 1.º fascículo, 1953).

Com discursos bem distintos, os quatro poetas surgidos em torno de 1961, que mencionei, realizam o que há de mais inovador na poesia portuguesa da década, abrindo, logo no início da mesma, caminho para toda a poesia que se seguirá, até aos nossos dias. Poetas como Armando Silva Carvalho, Fernando Assis Pacheco, Vasco Graça Moura, vindos dos anos 60, António Franco Alexandre, Nuno Guimarães, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, Nuno Júdice, António Osório (embora pertencente a uma geração anterior), a partir da década seguinte, Luís Miguel Nava, Gil de Carvalho, Al Berto, Paulo Teixeira ou Luís Filipe Castro Mendes, depois de 80, Manuel Gusmão (geracionalmente ligado aos poetas de 70) e Fernando Pinto do Amaral, na presente década, são outros dos marcos principais desse percurso, ainda que, obviamente, profundas sejam as alterações verificadas e as diferenças, quer no modo como o panorama geral evoluiu, quer na forma como cada autor interpretou essa evolução. É possível que, em parte deles, o desejo de inovação, a explosão de tensões verbais, a necessidade de produzir surpresa, tenham cedido lugar a discursos isentos de sobressalto, de inquietação ou de rebeldia. Mas não falava Ramos Rosa de «aventura da pureza poética» e não dizia Ruy Belo, autor de alguns dos melhores ensaios sobre poesia contemporânea escritos em Portugal, que a poesia é, sempre, uma «aventura da linguagem»?





In Gastão Cruz, A Poesia Portuguesa Hoje

2.º edição, pp. 221-224

Lisboa: Relógio d’Água, 1999