2006-11-30

relatório preliminar



o cadáver de hoje é um rapaz aos caracóis. suspeita de envenenamento. o antídoto é a poesia. um beijo na testa antes de abrir. sabe a chuva de novembro. cheira ao perfume de deus. tem uma nuvem escangalhada dentro da cabeça. e uma chave que abre a porta do céu. pendurada numa mola de estender a roupa. os olhos são limões com espingardas. o pescoço é um barco ao longe. os pêlos do peito são lírios ao vento. e desconfio que a pele é do fundo do mar. ver à boca de cena quantos sonhos tem nos dentes. ouvir o silêncio. a alma é o osso do coração. possível causa de morte: caixa torácica insuficiente. dada a proximidade pulmonar. o sangue veio a coalhar. leitos de rubis. um colar de beijos. nas falanges das mãos. começou a falar. não me espanta. é um génio.


*

(fotofrafia de augusto peixoto)

2006-11-28

uma flor





era uma vez uma fada muito bonita que vivia num vaso. um vaso é um mundo muito próprio onde a terra faz vibrar as pequenas coisas. nesse vaso o dia não é dia. e o sol nasce durante a noite. as sombras dançam acalentando um sorriso. nssinha era talvez uma doce surpresa adolescente. ela tinha o condão de despoletar o orvalho nos olhos de uma flor. foi ela quem criou as pedras redondas e polidas e delas fez caminhos de água. havia uma ilha de prata no meio do vaso a que chamamos lua. teria nssinha de construir a paciência? para atravessar o mar do mundo? nesse vaso as horas são árvores que falam. que acordam nssinha. as folhas verdes inclinam-se sobre os caminhos de água. e beijam-lhe o umbigo. à tardinha. o tempo desvanece-se na ondulação da seiva. nssinha vestia o seu manto de anémonas. e viajava no seu barquinho de folhas. num esplendor verde. o seu corpo poema escarpado. é a eternidade no vaso da ausência.



O Corvo (autor do texto e da imagem) e eu queremos oferecer à nossa amiga Vanessa uma flor que pertence a outro tempo.



deixas-nos ser os teus pirilampos?

2006-11-26

"ama como a estrada começa"



Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura
Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

Mário Cesariny



(quadro de mário cesariny e mário botas)

2006-11-23

um ano depois



querido avô
não irei repetir as tuas últimas palavras
tentarei proferir as que não me disseste
foi depois das seis horas da tarde
pousei o auscultador respeitosamente
imprimi um papel de luto antes de sair
deixei a minha mãe desenhar o primeiro gesto
e recebi no ombro o vómito do teu sorriso
fui eu quem te vestiu e remendou um terço nas mãos

hoje é dia do pai, avô
hoje é um dia duro, pai
tu és o meu pai em todas as minhas horas
e eu sou filha do teu sexo inerte e puro

tu penduraste o meu medo no banco do baloiço
tu levaste-me à escola no primeiro dia da inocência
tu mudaste o meu penso higiénico no teu sangue
tu mostraste-me a beleza das flores e das pedras
tu levantaste-me de todas as vezes que me deixaste cair
tu ergueste-me mulher por dentro dos teus olhos
tu compraste-me cigarros com a tua reforma inválida
tu deste-me a tua cama para eu amar um homem
tu enviaste-me um anjo nas asas do adeus

amo-te, avô
morreste no dia 23 de novembro de 2005
e ainda não verti uma lágrima
tu sabes que eu quero chorar
tu sabes tudo de mim, avô

sabes que intuí o amor do anjo
e que me vi no espelho que o anjo me trouxe
como antes me vias e eu não podia

sabes que eu não sabia nada de mim
sabes que morri em todas as palavras do anjo
e que nasci em cada um dos seus silêncios
sabes que sofri as humilhações do anjo
e que a tortura do anjo me edifica
sabes que voei nas promessas do anjo
e que a ternura é o melhor orgasmo
sabes que o anjo me fez feliz, avô
sabes que amo o anjo

onde está o meu anjo, pai?



*

(fotografia de jaime silva)

2006-11-21

fruto proíbido


sem asas nem escada. assim a folhagem esgrime a brisa. em voo brando.


*

(fotografia de autor desconhecido)

2006-11-18

acróstico



Foste tu que ensinaste à lua a preciosa
Rota dos cometas e dos corpos celestes
Apanhaste as estrelas do céu e do mar
Navegaste oceanos de luz e esperança
Criaste o azul dos poetas e inventaste o
Infinito. foste tu que ensinaste aos raios
Solares o brilho puro da água dentro do
Coração das flores e guardaste a magia
Onde começa a vida e termina a dor.

*

(fotografia de paulo bizarro)

2006-11-16

com o luís



não ousarei reescrever
a palavra tempestade
uma gota deste mar
de ventos consumidos
serei antes a praia
que acalenta esperanças
ou um grão de areia apenas
na ilha de todas as ilusões
tu és um poema de água e sal
que brota do riacho dos sentidos

Vocifera marinheiro
hasteia a bandeira negra
De tormentosas palavras
corta os mares à vela e
Cavalga crepúsculos
até chegares ao horizonte
Do poema derradeiro
onde mora a brancura de
Sal e mel de manhãs alvas
só então encontrarás a paz
Transportada por moluscos
artifícies da serenidade
De prata como são as salvas
de ouro como a eternidade

alice e luís monteiro da cunha



*

(fotografia de autor desconhecido)

2006-11-05

ilusão de óptica




no cabelo pintou madeixas de outono
e na boca o sangue das cerejas
trazia na pele o aroma das rosas
e uma lágrima verde a apodrecer
na lapela
alice


no húmus a lágrima cresce madrugada
e o outono leva nas folhas
a tinta do velho amor
compro lindas roupas
uns lábios novos
e sacudo o verde da lapela
e das estações da pele
na roda dos meus aromas
cresce no meu útero
uma nova flor
ana maria costa



(fotografia de autor desconhecido)