2007-01-11
2007-01-06
uma casa com tecto falso
sabes, mãe. a janela que abriste no chão da sala verte luz na alcatifa. isto aflige-me muito porque pode entrar alguém. há pessoas que dão ordens aos pés e andam por aí. e fazem-no diariamente em grandes quantidades. elas não sabem que existes debaixo do teu vestido preto. imitam-se a criar hábitos em vez de filhos. fingem que a rotina é menos fatal do que viver. menos as viúvas sentadas a ler o destino. estas mulheres têm teias de aranha nos sapatos. e outras criaturas que guardam a desgraça nas fechaduras. penduram quadros na parede para contar histórias aos netinhos. diz-se que ouvem murmúrios quando as pedras choram. estão à escuta da amnésia e confundem isso com lágrimas. são velhas inúteis. monstros analfabetos sedentários que só servem para gastar dentaduras postiças. é por isso, mãe. tenho de te escrever. para não te matar.
alice
tenho brincadeiras monossilábicas como aos cinco anos. tocava nos teus seios, eu e tu nus na preguiça da tarde com o cheiro dos mamoeiros e o leite-seiva da mandioqueira a cair no terreiro. o hábito do teu corpo ligou para sempre o hálito na travessia das rugas, a casa envelhecida com falas antigas e assobios imberbes a chamar o sol como a buganvília trepadeira que descansava sobre o tecto. os teus mamilos, mãe, são ainda o meu sonho de águas novembrinas nos risos que ecoavam nas paredes e roçavam nas fotografias amarelecidas pelo desprezo. sei que vens ter comigo na angústia da palavra e comungas do meu fel quando, aziago, o dia vai na tempestade. os teus dedos molham nos meus lábios o tempo pacífico das palafitas.
josé félix
in teoria do esquecimento
2007.01.05
2007-01-04
a humanidade dos seres
o meu sol de inverno
fez doze anos. é obviamente o cão mais bonito do mundo. tem um cancro. há alguns meses atrás. na mesa do veterinário. foi-lhe amputada a belíssima cauda. estava no lugar da sombra. agora vai fazer uma biópsia. para analisar novos caroços. que surgiram em várias partes do corpo. obrigando a uma depilação profunda. antes que desapareças. ficas aqui guardado.
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sou absolutamente viciada nos programas da vida selvagem. ontem dei por mim a pensar. se colocassem os animais em frente à televisão a assistir à nossa vida. que nome teria o programa?
2007-01-03
a melhor versão de ano novo
2007-01-02
o amor mora aqui

é um homem branco mais branco do que o normal. nasceu albino no seio de uma família que não conhecia tal herança genética. foi com grande espanto que a mãe o recebeu bola de neve quente sujo de sangue. viu nele um monstro e apartou-o para casa de uma prima que não lhe deu afecto nenhum. josé seria o primeiro de quatro irmãos albinos num total de seis filhos que bebiana teve. a aldeia transmontana tornou-se um núcleo de formigas curiosas que acorriam à casa do tapadas. esta era a alcunha de joaquim que rapidamente se refugiou na bebida por não aceitar os fantasmas. a filha mais velha matou-se e as mais novas pintam o cabelo e vão à praia com sombrinhas. josé escreveu uma carta ao salazar e teve direito a um par de óculos especial e lugar no navio para áfrica. aos vinte anos já vivia em joanesburgo e aprendia o ofício de contar dinheiro. ficou conhecido como o homem mais branco do ultramar com mais namoradas. depois foi destacado para uma agência portuguesa e não deixou descendência mesclada. arrendou um quarto no centro da vila até o gerente do banco lhe confiar um cargo de respeito. comprou uma casa bem no centro da zona histórica para assombro de todos os que o tratavam por branquinho. começou a sair com uma rapariga chamada lola que casou com outro homem e foi muito infeliz. um dia ia a atravessar a rua e cruzou-se com uma rapariga que usava a saia muito curta e decidiu casar com ela. é uma mulher pequena e magra que trabalha como modista e tem uma mestra má como as cobras. ameaçou maria que aquele tipo de homens tinha uma pele que transpirava nódoas para a roupa. quando josé foi namorá-la no banco de pedra debaixo da tangerineira ela passou um lenço branco na cara dele e viu que era falso. olinda não achou graça ao pretendente da filha e mandou franklim segui-lo e vigiá-lo. mas ela disse que só o via a ele dentro do mesmo quarto que ela para a vida toda. maria convivia com uma solteirona muito boa que todos tratavam por menina. vivia num casarão coberto de rendas no pó alto dos movéis excepto o piano de cauda que se ouvia do quintal. anunciada a boda abriram uns botões de rosa debaixo da chuva torrencial que nunca mais nasceram nem se sabe a origem de tais flores. os noivos foram para a ilha da madeira e viveram em lua de mel para sempre.
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para os meus pais, que celebraram ontem 30 anos de casados.
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faz hoje um ano que vivo nessa casa que o meu pai comprou.
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(quadro de salvador dali)