2006-08-31

carta diamante



já não anoitece, meu amor
a escuridão reformou-se

quando tu choraste
há quarenta e oito horas

que é dia
sabias que as searas
imitam os teus braços?
e as flores

a dança do teu ventre?
sopra uma brisa que agita
o chão do mundo
a natureza inteira persegue
o brilho das safiras
só disponível
nos teus olhos
enquanto a lua apodrece
ao meu lado
o mar arrasta

os destroços dos cometas
nos teus cabelos de prata
depois de ti
a eternidade
é um banco de areia
onde as orcas vêm acasalar

no dorso luzidio
espelham o retrato
do nosso amor
sem herança

*

obrigada, isabel, por me ter citado, bem haja, um beijinho

*

(fotografia de jaime silva)

2006-08-30

não tragas rosas



não tragas rosas, meu amor
traz o embrulho com pedras
para que possam vestir-me
palavras de que te arredas

com olhos para cobrir-me
desse desejo tardio
de volúpia libelinha
a dançar no corpo frio.

vem c’oa chuva cantarinha
beber-me o sexo em sossego;
e se assoma à amurada
do castelo eu não nego

a sorte que na alvorada
solta no loendro o esperma
da morte que se redime
no coito fácil que enferma.

não tragas rosas, meu amor
traz pedras, pedras, mais pedras
porque os nossos corpos lúdicos
têm o sol das veredas.

*

autor: José Félix

(quadro de salvador dali)

2006-08-25

desafios



a amiga licínia quitério teve a amabilidade de nomear este blog no jogo de etiquetas.

agradeço a sua nomeação e etiquetas a este blog e passo a citar seis amigos para o efeito:

*

alberto serra: a melhor poesia da minha vida

isabel mendes ferreira: o melhor piano do universo

vanda: a melhor repórter emocional da blogosfera

vanessa: a melhor dose de papel e música aos pedaços

claudia: as melhores palavras são mentiras históricas

francisco carvalho: o melhor blog nu singular para ler no plural

*

(fotografia de mitchell miller)

2006-08-18

assim me aconteces



no primeiro dia sem ti
o luar grita, meu amor
deste lado mais branco
ouve-se o canto virgem
dos livros por escrever
sabes que te deito e velo
todas as noites te adormeço
perto das palavras puras
quantas voltas tem o mundo
quando o sono te abraça?
onde estás pontuado na
vírgula do sonho que te leva?
como perdoar a literatura
por te aprisionar num poema?
diz-me que há algodão
dentro das estrelas
dá-me a tua mão nuvem


*

(fotografia de augusto peixoto)

o grito



para o rafael

a noite entra devagar no dia
tacteia-lhe o ventre como um amante
sobe-lhe a extinção da pele em sombras
lambeo-o de sal no princípio do medo
abre-lhe os fios que acordam as narinas fundas
rasga-lhe as meias que desbotam turvas
percebe-lhe a liquidez monótona
descalça-lhe os dentes pretos
e começa a matá-lo

o sono é um monstro sem dedos
ataca a urina das crianças tenras
tira-lhes as cuecas em silêncio
bebe-lhes o resto da vida em prantos
come-lhes a esperança de boca aberta
quebra-lhes o olhar sem destino
rouba-lhes glóbalos brancos
converte-lhes sonhos em células
troca-lhes os orgãos por ferros velhos
e começa a matá-las

a angústia rodeia a tristeza
toma-lhe os pulsos como algemas
bate-lhe pregos com martelos
perfura-lhe as tripas de aço
incendeia-lhe as esquinas
aparta-lhe as espinhas
aparafusa-lhe os pensamentos
pendura-lhe incertezas
promete-lhe o espancamento
e começa a comê-la

a escuridão penetra a réstia de luz
lança-lhe cabos presos
segura-lhe os braços pelos nervos
agarra-lhe a cintura em vespas
prende-lhe as tensões latentes
aguça-lhe o instinto ausente
coça-lhe os cotovelos
decompõe-lhe as vísceras
esfrega-lhe os tímpanos
e começa a comê-la

a madrugada aborta a manhã
rompe-lhe as mamas lisas
limpa-lhe os sentidos
lava-lhe as mãos em sangue
cicatriza-lhe as feridas do tempo
solta-lhe os cabelos lisos
veste-lhe roupa fresca
acaricia-lhe a testa
jura-lhe amor eterno
e começa a beijá-la

*

(fotografia de hugo amador)

um homem



Conheci um homem que tem várias mulheres no pensamento. Era um homem pequeno e raro, desses que a morte há-de levar por interesse. Conheci-o perto do mar, porque convém a qualquer actor um bom cenário. Enquanto as ondas batiam nos olhos dele, o sal foi temperando as palavras em forma de verdades. Era um homem que mentia por um orgasmo. Escrevia poemas e beijava tão bem como escrevia. Quando me tocava, o mar entrava em mim e nunca mais fugia das mãos dele. Era um homem dotado, bastava um verso para navegar uma mulher. Na verdade, era um barco, pois só um actor comete um naufrágio em cada praia...

*

(fotografia de armindo dias)

sentimento anónimo



sei que o fantasma deambulou pelo tudo de escape
e acabou em gazes junto ao ânus do esgoto.
sei que a velha escondeu o miolo de carcaça no bidé
e abriu a janela para as rolas se alimentarem.
sei que a estação mais viável para o colapso
fica na encruzilhada sem sinalização.
sei que o acorde premido na viola do saco
se enjaula no pulso de quem o tocou.
sei que voltas amanhã.
pergunto:
como é que te chamas?

*

(quadro de picasso)

esta noite



deve haver um penedo
que sustente o céu
uma espécie de sol
na madrugada
que pondere
o pensamento
o lume das velas
não chega
para suster
a lua
ainda assim
é a luz que
modera esta
conversa improvável

*

(fotografia de diogo sarmento)

deslumbramento



não veio ninguém, meu amor
procurei todo o dia a palavra
que defina o efeito de ti em mim
e não houve um murmúrio
nem sequer um prenúncio
nada que me aflorasse à boca
é agosto lá fora mas o verão
sem querer sentou-se côncavo
no meio das minhas coxas
e começou a chover, meu amor
não sei onde está a resposta
já contei os dias e as dúvidas
tu sabes que não confio em ti
tu sabes que ainda não aprendi
a ler a chuva do meu corpo

*

(fotografia de ricardo tavares)

ao telefone



tenho estado a ampará-la
à minha vulva
porque ela quer voar
nas asas da tortura
das tuas palavras
porque as tuas palavras
já não são palavras
cada uma das tuas palavras
é um dedo das tuas mãos
ao início
os teus dedos aproximam-se dela
para alisá-la
os teus dedos têm olhos nas pontas
cada olho vê um recanto diferente
da minha vulva
os olhos dos teus dedos
ficam expectantes
diante da fragilidade dela
e tocam-lhe
começam a acariciá-la
é tão frágil
tão dócil
tocam-lhe para a proteger
alisam-na lentamente
acariciam-na longamente
até que ficam cegos
os olhos dos teus dedos cegam
e começam a dedilhá-la
ameaçam-na
ela começa a cuspir
a minha vulva cospe nos teus dedos
eles estão cegos e molhados
já não a protegem
comem-na
num imenso movimento profanatório
desenham círculos à volta dela
apertam-lhe os lábios
metem-se lá dentro
primeiro um
depois outro
a comê-la
como bocas
as tuas palavras
já não são palavras
cada uma das tuas palavras
é uma boca a comer a minha vulva
todas as tuas palavras
são bocas em cima dela
tantas bocas têm os teus lábios
quando a beijas
é para acalmar o castigo dos teus dedos
aproximas a ponta da língua
e desenhas um verso
ela está molhada
e gosta da tua saliva
e cospe na tua língua
e tu juntas a boca
os teus lábios sobre os lábios dela
num beijo prolongado
comem-se
e tu também cospes
com a tua boca
lá dentro
e ela começa a arder
a tua saliva está tão quente
dá-lhe lume
acende cada poro dela
em cada esquina
há uma chama de fogo
por tua causa
as tuas palavras
já não são palavras
as tuas palavras são pénis
cada uma das tuas palavras
é um pénis a cheirá-la
até que todas as tuas palavras
se transformam num só pénis
no teu pénis viril
quando o teu pénis
entra dentro da minha vulva
ela queima
está tão quente e húmida
o teu pénis começa a arder
começa a profaná-la
o fogo sobe nas paredes dela
e o pénis cresce por dentro
em investidas de água
e mais investidas
e mais água
já não são palavras
o que escreves
são dois corpos encaixados
na profanação
são línguas de fogo a subir pelo corpo
em forma de dedos cegos
são bocas em chamas
beijos aflitos
mamilos espetados na angústia
até que os lambes
vens com a tua boca a arder
da vulva sobre os mamilos duros
e desfazes os caroços nos dentes
devagar
tão terno
sempre a enterrares o pénis
dentro dela
sempre mais
até que as mamas dançam à tua frente
desafiam os teus olhos
provocam os teus dedos
e as apalpas
torces os bicos nas palmas das tuas mãos
as tuas palavras dançam
comem-se
encaixam-se
apertam-se
vêm-se

*

(fotografia de eric kellerman)

coisas escritas



conheci um homem que tinha uma paragem de autocarro dentro da cabeça. todos os dias vinham alterar os papéis dos horários oara evitar atrasos na carreira. uma vez não vieram e as pessoas foram de táxi pelo corpo dele. ao chegarem ao peito viram que tinha um bom coração e desceram para admirá-lo. outras seguiram viagem até aos joelhos e ficaram na zona sul a contemplá-lo. as pessoas que ficaram no coração do homem cairam num precipício e nunca mais voltaram. as outras que ficaram nas rótulas depressa apanharam um avião na pista de sentido único. moral da história: o homem não anda de bicleta.

*

(quadro de salvador dali)

anagrama



Lá fora a cidade dorme
Onde eu cresci sonâmbulo
Ruas sujas como promessas
Dor e lixo dentro do sono

Podia acordar e ser grande
Odiar o vazio circundante
Sentar-me no pensamento e
Envenenar a criança no
Imediato do crescimento mas
Deito-me sempre acordado
Ouço o grito da tarde e
Nunca envelheço as horas


*

(fotografia de reinaldo fero)

para o dark



ontem dei por mim a passar por ti, não vou dizer aonde, estavas de costas, viravas a cabeça, vias-me pelo canto do olho e algo nas cores da roupa te cambiava o tom do olhar, sorrias a meio da boca, torcias os lábios, nada dizias, eu parada na montra a decifrar as mensagens dos carros a passar no vidro, tão depressa, tão inútil, tão arrepiada na curva das pernas onde o teu olho bicudo furava, tão depressa, tão profundo, só a paragem do metro testemunha, e os sacos das compras encostados, asas de plástico no meio de nós, não te lembras?

*

(fotografia de margarida araújo)

escotoma



quando ali me sentava
os anzóis prendiam as sombras da tarde
a ganir com o cio
se a água do rio ao menos vazasse a prata sem dor
ou os meus pés fossem canas de pescar sapatos
mas ali sentada diante do nada
era lume brando a cozer traições

e a agonia dos peixes na berma da água
era o fim dos teus olhos a acabar a tarde

se ao menos os barcos passassem de véspera pelas ilusões
ou as redes vazassem sonhos menos fáceis
mas ali sentada com a alma trocada
pescava o diabo e as tentações

ainda que eu cruzasse a solidão entre as pernas
o cio esganava o brilho da prata caído no chão
mesmo que os anzóis mordessem a margem
nunca a rota dos barcos me corrigia a alma
e ali sentada de pernas cruzadas
não tinha calçado

nem canas de pesca
para a solidão

*

escotoma means "you shall see what your mind wants you to see"

*

(fotografia de anhandc)

único



Quando a tua mão guiou a minha
Todos os autocarros esbarraram na tua casa
E o barulho ensurdecedor da rua emudeceu nos teus lábios
E os vidros espalhados na costura da roupa
Fizeram o sangue infringir a velocidade
Já não sei o tempo que levou
O socorro a chegar-me ao céu-da-boca
Uma bomba de oxigénio a entupir-me
A respiração impossível salva devagar
Foi ainda há horas mas o meu corpo mente
Desacredita do teu por entre as grutas
Dada a improbabilidade do ângulo
Mas as pernas pesam-me nos olhos
Quis dormir para acordar do sonho
E nem as buzinas despertam o meu ser
Ouço os carros lá fora a passar
Na cadência fúlgica da tua respiração
Que nem o semáforo impediu de parar
Vejo ainda as tuas mãos possessas
Os teus olhos cada vez mais brancos
A janela a boiar nas mentiras lá fora
E a ciência é contrariada nas coxas
A matematicidade desmente esta fusão
Que dirá o teu dentista sobre isto?
Receitar-te-á um veneno paralisante?
Ou algo que impeça o torpor das veias?
Dir-te-á para comeres papas e assim poupares a boca à minha pele?
E tu, que dirás sobre isto?
Desejar-me-ás boa viagem na hora de ponta?
Pedir-me-ás que me venha depressa mas com cuidado?
Ou sugeres antes que desapareça no túnel que abriste sem retorno?
E eu, que direi sobre isto?
Direi talvez que te engoli pelas nádegas
Direi talvez que demos corda ao mundo
Que giramos quando a terra parou
Que o acidente lá em baixo é a prova do crime
Que veio a polícia em figura de bigodes fartos
Que as prostitutas entraram aqui no prédio
Que uma delas violou o teu quarto
Que me vendi pelo tédio da viagem de hoje
Que te exigi uma identificação branca
Que não me vim por reserva marcada
Que quis vir-me depois nas tuas costas
Que me rendo
Direi isso

*

(fotografia de luciolia)

sintomas do amor súbito



primeiro sintoma: a rejeição
creio que a própria morte seria mais doce
do que o peso do não que te disse
e que levo anexo aos olhos
a bulir nas pálpebras

segundo sintoma: a insónia
agora, o teu silêncio grita-me
e eu não posso dormir
tu és o sol e os risos
na concavidade das minhas coxas

terceiro sintoma: a procura
perdoa-me vir aqui a estas horas
falar-te sobre coisas puras
mas eu não sabia que podia amar um desconhecido
e preciso de ti dentro de mim

quarto sintoma: a aceitação
eu converti-me num ser líquido
quando a tua voz me prometeu calma
mas ainda não me vim
porque quero os teus olhos no meu sexo

quinto sintoma: o desejo
eu tenho fome de ti
quero sentar-me no teu corpo
e comer das tuas mãos
e beber do teu sangue branco

sexto sintoma: o delírio
a chuva está agora a escrever
o nosso encontro fora dos corpos
mas a literatura não se compadece
sem a fusãodo nosso amor súbito

*

(fotografia de josé reis)

prognóstico reservado



hoje de manhã, fui ao ginecologista
na verdade, já nos conhecemos há muitos anos, desde muito antes do mundo ter dado as voltas necessárias para que eu viesse a trabalhar no mesmo hospital que ele
como há muitos afectos entre nós, trato-o simplesmente por gi
vi-o agarrar uma caneca de café na sala comum e segui-o até ao gabinete
pelo canto do olho, piscou-me as perguntas do costume
eu, no meu habitual humor dramático, fui directa ao assunto:
- o meu corpo não pára de chover há três dias
ele riu-se, eu podia ter dito que não parava de morrer, ele ria-se sempre
pousou a caneca, arregaçou a manga e enfiou-me o punho até ao útero
já sei de cor os dedos dele a abrir-me enquanto fala do tempo lá fora
carrega o sobrolho e sei que desta vez foi mais do que um afogamento
- estás apaixonada, linda, é algum dos teus pacientes?
nesta pergunta vulgar entre colegas, afunda-se o abismo ético subjacente
- não, mas desconfio que é alguém aqui de dentro
ele hesita entre o colega de ortopedia e o cirurgião vasco
eu ri-me, ele podia ter dito que era o segurança, eu ria-me sempre
ele castigou-me os nós dos dedos com fricções nada meigas
virei as mãos para assar melhor do outro lado
- ele propôs um encontro do outro lado da rua, disse-lhe
o gi adora servir moral ao pequeno almoço:
- o teu marido é o meu melhor amigo, sou padrinho da vossa filha...
- ficou na intenção, garanti-lhe, inventei uma distância que não existe, uma profissão que não exerço, um carro que não conduzo, fotografias suspeitas e ele não veio
- promete-me que vais à dermatologista, pediu-me
- quando as primeiras esferas de água rebentaram na minha pele, a madalena estava de serviço e sugeriu apenas hormonas saltitantes
o meu bip apitou anunciando a próxima consulta
- tenho um desfuncionado eréctil à minha espera, disse-lhe
- caso resolvido, então, brincou, assim que pingares, ergue-te uma estátua
enquanto vestia a bata, desejei que a gíria clínica pudesse revelar-me o teu nome

para o duarte



eu: sabes o que é o amor?
tu: sei, o amor é gostar muito
eu: e sabes quanto é muito?
tu: muito é mil
eu: então, o amor é mil?
tu: o amor são cinco milhões

é assim que uma criança de cinco anos nos desarma irremediavelmente
gostava de poder reter numa frase, dado que não me aventuro a ousar reter numa palavra, a sensação de ti comigo
ao meu lado jaz um dicionário velho, grosso e pesado que a minha mãe me deu para descobrir as palavras todas e nem ele encerra tal sabedoria
procurarei escrever sem reservas, ainda que só o teu olhar austente tal prodígio
quero, antes de mais, dizer-te que, para mim, foi um passo em frente na vida conhecer-te (o que aconteceu no dia 6 de abril de 2006)
disse-te que não conheço outras pessoas da tua idade e, talvez por isso, não sabia como seria eu contigo
e foi por não saber ser eu com alguém maior do que eu que procurei purificar-me dessa fragilidade devorando as sobras da tua idade na cozinha
o teu pai disse-me mais tarde que não havia necessidade de eu ter tido todo aquele trabalho, mas ele ainda não sabe das lides domésticas no meu sotão mental
repara que é extremamente complexo escrever-te sem recorrer aos substantivos maiores que a literatura oferece
no momento, só me ocorrem nomes próprios como grandeza, infinito, sapiência, vida, violência, pureza e extinção
como efectivamente não sei falar de ti em mim sem me socorrer destes desígnios, vou agora tentar, repito, tentar, decifrar-lhes o sentido, mais para mim do que para ti, honestamente, perdoa-me o meu ego
sabes, d., a alice é uma pessoa que se sente pessoa e que se sente humana antes de tudo o resto que como pessoa sente
e a humanidade da alice não deixa espaço a verbos maiores do que ser
e ser humana, sabes, é para a alice uma tarefa tão escorregadia como lavar o frigorífico
a alice é uma pessoa frágil, quebra com a facilidade de um copo ensaboado
mas é a essa fragilidade que a alice vai buscar a força de um abraço
e um abraço, d., é a solução de muitas perguntas sem resposta
e nesta resposta de um metro e dezassete cêntrimetros encontrei a tua grandeza
não é nada fácil falar do infinito, sabes
porque reside na alice a dimensão do universo e simultaneamente a inutilidade do pó
desculpa interromper para pedir perdão ao pó pelo insulto
eu podia acrescentar o adjectivo inteiro ao universo, mas duvido da sua homogeneidade
oxalá também tenhas um dicionário igual ao meu ao teu lado quando leres isto
as mães são peritas em dar aos seus filhos coisas que nunca lhes farão falta
é aí que quero chegar, d., à eternidade que a descendência e só ela aufere
e é aí que tu és infinito
agora tenho de falar primeiro sobre o desconhecimento
quando não sabemos algo, não sabemos que desconhecemos algo
e quando algo se sabe, sabemos que o desconhecíamos até então
entre o saber e o conhecer existe ainda assim algo desconhecido
e é nesta fronteira entre a realidade e a poesia que fica a tua sapiência
confesso que me sinto inteligente a construir estas afirmações
mas as minhas palavras nada valem diante da obra de ossos e sangue que pulsa no teu corpinho lindo
fazer um filho como te fizeram é a vida em ti
seres filho da vida é a tua violência, é simples
porque o mundo onde nasceste não se compadece com a tua inocência
o mundo, d., ensina a destruir a tua pureza
és ainda um tempo de infância, meu querido
e essa espécie de amor está em vias de extinção
agradeço-te o beijo que deixaste no meu coração


*

(fotografia de ricardo frantz)

morte de simães



um dia
virás aqui ler-me
tu ainda não sabes
das gaivotas surdas que tombam
nem dos tigres velozes
nos meus ouvidos
um dia
saberás da luta das aves
e do tremor da terra
enquanto fumas

um dia
virás aqui ler-te
eu ainda não sei
das correntes mudas que prendes
nem das cutículas pendentes dos teus dedos
nos meus dentes
um dia
saberei do cheiro
que guardas fora dos livros
e do poema que amas
na porta do meu corpo

um dia
virei aqui ler-me
tu ainda não sabes
da região do vinho do meu sangue
nem da curta metragem das horas
nas tuas cordas vocais
um dia

saberás do tempo
e do interruptor
que apaga o medo

um dia
virei aqui ler-te
eu ainda não sei
das patas nervosas que aumentas
nem dos olhos cansados
na pele do meu rosto
um dia
saberei dos dias que matas
e dos cadáveres
que comes ao jantar

um dia
viremos aqui ler-nos
ainda não sabemos a data
que escorre na janela
nem a saliva do beijo
da mulher que te pede um cigarro
um dia
saberemos ser dia
depois da madrugada

gravidez de risco



tudo começou com um equívoco
podia ter ficado logo esclarecido
mas o verbo entender é plural

tu eras casado e estavas grávido
eu era a irmã do teu patrão
gastamos horas a discutir o inevitável

o que une afinal dois seres?
estados civis registados?
estatutos mal intencionados?
bebés em úteros mal amados?

lembras-te da tua mulher deitada?
de me ligares do alto da barriga dela cheio de tesão?
de me ameaçares por me desejares em vão?

lembras-te do dia do parto?
de ficares comigo em casa enquanto ela se vinha?
de me penetrares no exacto rebentamento das águas?
de me engravidares no primeiríssimo choro?

lembras-te do telefonema?
quando te avisaram que eras pai de uma menina?
e choraste em esperma pelo meu corpo abaixo?

lembras-te da culpa?
do pénis guardado e logo recatado na tua vergonha?

o teu patrão despediu-te
o meu irmão rejeitou-me
a tua mulher nunca soube
mas foste tu quem pariu a tua filha


*

(fotografia de eric kellerman)

à minha procura



ainda há pouco me encontrei
cruzei-me ali comigo mesma... seria eu?
seria outra de mim que não conheço?
serei poema, pessoa, pintura ou verso?

no silêncio anónimo em que me refugio
mergulho na ressaca dos dias que hão-de vir
espero que a água me devolva o sangue
mas só a luz me enxuga a nudez

aqui encostada à porta desta casa
onde me entrego ao delírio dos sentidos
deixo a música despir-me a sombra
e adormeço de pé à minha espera


*

(fotografia de eric kellerman)

a quatro mãos



I

Sanamente mas propositadamente
Fiz aproximar a folhagem dos cabelos
Ébria numa estrutura simplificada e uniformizada
Ramificada em paciência ondulada
Pouco deitada…
Ainda que silenciosamente adivinhada
Silêncio…
Denso silêncio
As palavras parecem bastar
Neste momento de permanência…
reminiscência
Insolência
No puro acto de te soletrar
Os sentidos
Mil línguas nos teus ouvidos
Respirando-te o corpo liberto
Entendido no domínio completo
Profundo…
O fulgor alimenta entreaberto
Tudo o que é exacto e pouco certo
Não…
Não me peças para desenhar o sono

II

entre aspas chamei-te flor de espinho
desde a raíz das têmporas
à sílaba prodigiosa do meu leito
vieste insano e puro profaná-lo
numa diáspora informe e livre
prima da insónia moribunda
fevereiro foi o nome do desejo
ainda as nuvens encobriam
o meu corpo de brasa acetinado
o inverno sabe a pólvora crua
o tempo desceu pelo ano abaixo
foi carregando o ardor profeta
incendiando o mar de quimeras
sem perdoar o brilho da inocência
quando foi que me tocaste?
em que dia violaste o retrocesso?
que veneno me assombrou a memória?
qual o feitiço que rezaste?
não respondas
deixa-me adivinhar-te os gestos


*

(textos de miguel e alice, quadro de picasso)

preâmbulo



A ponte que une a minha aldeia à tua cidade é um teclado avariado na clave de sol. Sempre que venho da horta do meu passado, detenho-me aqui, junto do pilar onde nos beijamos naquele primeiro dia do mês sem calendário. Ao longe, do outro lado da estrada entre dois braços, fica o cemitério dos comboios. Antes, vínhamos ambos a pé pela linha tracejada a contar as tábuas que nos faltavam para chegar. Tu rias-te muito alto até o eco levantar os pardais dos ramos da saudade. Eu urinava pelos pregos de ferro abaixo até colar pedras às cuecas. Agora, a mata cobriu o caminho do nosso amor sem palavras e violou os ninhos das asas por bater. A imagem que guardo deste lado da margem é a da viagem da separação. Já não sei há quantos anos o rio corre desafinado no verso sem refrão. Nunca te disse nada, mas se hoje vieres a minha casa, põe uma rosa no piano e toca-me baixinho. Amanhã quero apanhar uma nave com rumo ao teu coração.

*

(fotografia de augusto peixoto)

não te deixarei morrer, amor



quem és tu que avanças o tempo no meu calendário?
que o escrutinas como no talho e divides em doses duplas?
pago-te a carne cirurgicamente cortada
e levo-te pendurado em mim até ao congelamento cínico
escolho a gaveta que promete melhor temperatura de conservação
e quase desejo esquecer-te
que esta seja uma câmara fúnebre irretornável
que o gelo devore a etiqueta da tua identidade
como um sopro de cera nas velas do teu quarto
que nunca a fome me faça recuperar-te no microondas
que a sede encoste ao lado da razão partida em farpas
que a minha boca possa ser líquida como antes
que o teu barco desencalhe e não derrame petróleo
na escuridão
quase desejo violar-te
separar-te em grãos no fundo de uma chávena
fumar-te consciente dos malefícios do tabaco
arrancar-te as gengivas e acompanhar com natas
passar o resto no triturador um dois três
saber em um que móis
em dois que dóis
em três que matas
fulminar-te na cama
e profanar o descanso da criança em chamas
quase desejo penetrar-te
lavar-te a trinta graus com analgésicos
secar-te no ponteiro das roupas delicadas
e enxugar-te depois com estaladas
eis a minha vingança
voltarei a ti num dia em que estejas acordado
vou esfregar a louça que entope a banca da tua consciência
e meter-me como açúcar nos teus dentes
deixa-me entrar em ti
quase desejo perdoar-te
tirar do frigorífico a fatia de sono dos teus genes
e adormecer


*

(fotografia de helder rodrigues)