A casa onde morei é um prato com espinhas na borda da vida. A solidão há-de habitar no meu retrato até se esquecerem do meu nome. Os meus netos hão-de tocar na solidão e perguntar: quem é? Nesse dia serei a avó.
O meu quarto tem um relógio especial que conta os anos do esquecimento. A amnésia será tão eterna como o amor escrito na pedra do meu epitáfio. É uma equação sem nexo que dura para sempre no meu retrato.
Os homens têm um país em cada braço e falta de jeito para correr antes que seja tarde. O sono é o lugar onde se hospedam sempre que enterram as mãos dentro de uma cidade. Todos adiam o cansaço para o Outono numa casa sem meia estação.
Um dia a minha filha dirá: hei-de ser mãe. As palavras são os anjos da guarda. O tempo há-de passar e reproduzir a sentença. É antes da alvorada que a leiteira vem com o sumo das vacas. Pousa a garrafa rente à porta da vida que ainda está a dormir. Os anjos levam o leite para dentro dos homens e guardam o prazo de validade. Os anos caminham dentro do prato sem misericórdia. Os homens levam o leite para dentro da minha filha. O sangue interrompe o castigo por outro rio branco que lhe aflui às trompas. Há-de ser no meu quarto à frente do relógio que o ângulo das pernas brotará netos. É a jusante da memória que nascem as crianças sem história. Os meus netos hão-de perguntar: de quem é o aquário? Um dia hei-de ser um cavalo alado para não ser uma avó solidão.
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terceira parte de (ensaio sobre) a ruína