2006-06-30

para a vanda

(fotografia de julian hill)
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A casa onde morei é um prato com espinhas na borda da vida. A solidão há-de habitar no meu retrato até se esquecerem do meu nome. Os meus netos hão-de tocar na solidão e perguntar: quem é? Nesse dia serei a avó.
O meu quarto tem um relógio especial que conta os anos do esquecimento. A amnésia será tão eterna como o amor escrito na pedra do meu epitáfio. É uma equação sem nexo que dura para sempre no meu retrato.
Os homens têm um país em cada braço e falta de jeito para correr antes que seja tarde. O sono é o lugar onde se hospedam sempre que enterram as mãos dentro de uma cidade. Todos adiam o cansaço para o Outono numa casa sem meia estação.

Um dia a minha filha dirá: hei-de ser mãe. As palavras são os anjos da guarda. O tempo há-de passar e reproduzir a sentença. É antes da alvorada que a leiteira vem com o sumo das vacas. Pousa a garrafa rente à porta da vida que ainda está a dormir. Os anjos levam o leite para dentro dos homens e guardam o prazo de validade. Os anos caminham dentro do prato sem misericórdia. Os homens levam o leite para dentro da minha filha. O sangue interrompe o castigo por outro rio branco que lhe aflui às trompas. Há-de ser no meu quarto à frente do relógio que o ângulo das pernas brotará netos. É a jusante da memória que nascem as crianças sem história. Os meus netos hão-de perguntar: de quem é o aquário? Um dia hei-de ser um cavalo alado para não ser uma avó solidão.

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terceira parte de (ensaio sobre) a ruína

2006-06-28

acta para violino

(fotografia de mário galante)
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Inicia-se a viagem nas sombras no momento da estagnação dos mochos no ombro da manhã. O frio virá sobre a cidade como um manto de pó cremado. Deitarão o meu corpo numa cama de linho com o monograma bordado a pérolas. A colina que hei-de subir é um jardim onde o ritual das flores murchará no sétimo dia. Cumprirei o meu sonho de cavalo alado que foge para o campo de feno. Todos serão cúmplices do adejar inútil do meu fado. A minha filha há-de ser menstruada pela remissão da minha culpa. O castigo do sangue será leve diante da matança dos bichos da terra.

Quando aqui chegardes sabereis como estáveis enganados. As palavras que escrevereis tranquilizarão as vossas consciências. Direis: Aqui jaz uma mulher que amamos. Dai-lhe Senhor o eterno descanso e seja feita a paz na sua alma. Como vos enganais. Morrerei apenas quando os bichos cobrirem o meu corpo. Aprenderei então o significado do verbo comer. Os homens irão sobre o mundo indiferentes a este acto selvagem. Comungarão no pão e no vinho a absolvição dos meus pecados. Derrubarão árvores e florestas inteiras na esperança de um milagre. Mas os peixes do meu aquário não se multiplicarão. A minha filha há-de ler esta carta quando o cheiro dos móveis envelhecer. Será no princípio da mulher que a falsidade corta o cordão umbilical.

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segunda parte de (ensaio sobre) a ruína

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escrevo essencialmente porque é afrodisíaco

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to the gatekeeper

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acrescento excerto do comentário da marilena que adorei, obrigada e um grande beijinho para si

"Estes dois ensaios sobre a ruína compõem uma prosa com uma arquitetura de metáforas tão poéticas que encantam e levantam defuntos"

2006-06-24

(ensaio sobre) a ruína

(fotografia de michael morris)
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O meu caixão há-de ser uma árvore centenária de casco duro e veios secos. Os homens hão-de avançar na floresta quando a hora cercar os ramos do sono e derrubarão o tronco no solo com o suor das estrias a rebentar no cinto nas calças. Ouço o timbre metálico da serra a rasgar o corpo da árvore velha e sei que a respiração é uma casa onde o tempo não se demora a mergulhar. Vejo-lhes as mãos latejantes sobre a madeira e reconheço as cidades que atravessaram para chegar a este pântano de gritos. Todos se abeiram do meu rosto com espelhos e dedos transpirados para averiguar o momento em que devem começar a chorar. Sou então lágrimas e nada mais do que a representação do silêncio alheio.

Um dia hei-de ser uma máscara de dor na cara dos meus peixes. Eles hão-de nadar às voltas no aquário e lamber cada minuto da minha infância em que cresci. A minha filha há-de encostar as narinas às borbulhas líquidas que sobem sem parar pelo vidro acima e ler as histórias que elas escrevem sobre mim. Todos estarão demasiado ocupados com o sofrimento enquanto ela regista o adeus que pronunciarei na água. Pela boca dos meus peixes é que hei-de morrer. Os homens virão da floresta como quem traz um navio antigo que há-de navegar dentro do aquário. A minha filha há-de tocar a superfície do futuro e pentear os meus cabelos que crescem do outro lado. Serei livre nesse infinito do tacto em que ela benze todas as bocas que ali suspiram. Todos farão luto durante meses estipulados e o preto descerá sobre os seus gestos como noite diurna.

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talvez continue

2006-06-23

descida ao inferno

(quadro de nik fiend)
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ela pediu-lhe: conjuga comigo ser feliz

ele respondeu: eu sou feliz contigo

ela perguntou-lhe o gerúndio do verbo

ele respondeu: eu morreria por ti, meu amor

ela ficou sem voz e a eternidade abateu-se entre eles

ele pediu-lhe a chave da casa dela

ela soergueu o busto e conduziu-o ao precipício

ele perguntou-lhe a palavra que a abria

ela respondeu que era segredo

ele perdeu o medo e foram abismo

ela tinha a alma vestida de inverno

ele levantou nua a noite dentro dela

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ela era eu

2006-06-22

"moments in love"

(quadro de corinna button)
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dentro de água
segredei-te ao ouvido
a nudez que o teu corpo me inspirou
veio um anjo derreter no teu mamilo
o fogo que a tua pele incendiou
está outro boiando ao violino
sinfonias que o mar te baloiçou
e a cera derretendo em espinhas
teu cabelo de algas marinhas

à tona de água nadam dois meninos
que deste à luz mais do que o sol
do amor que fizemos clandestino
vieram óvulos servir-nos de farol
estão outros girando no destino
perdidos na corrente das promessas
e eu a tocar na tua perna
ecos molhados de música serena
pedindo-te que não me esqueças

*

to corinna
five years ago
i was living at your place
and you were the one
who asked me to write
about your paintings
i miss you my dear
all my love
alice

2006-06-20

post maior


(desenho de picasso)
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queridos amigos,

decidi publicar os comentários que mais me tocaram

porque se houver poesia neste blog, é escrita por todos vós

obrigada de coração e um grande beijinho a todos

alice

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"pouso o meu olhar diário nesta praia perdida em busca de alimento que me satisfaça esta estranha forma de fome" do carlos josé teixeira

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"Amar palavras e juntá-las
apaixonar quem lê
fazer as frases
molhadas da chuva do norte
o portão no muro
de ver quem quiser
quem souber"
do paulo

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"venho aqui docemente calmamente esfomeada, são horas de almoçar, eu sei, e fico assim satisfeita, agora já nem sei se almoce ou não..." da blue

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"{ ...existem palavras simples de complexas que gosto de escrever quando me sinto repleto do que leio (sempre que me agrada algo). deixo-te uma dessas palavras: «excelso» © ricardo biquinha... } " do biquinha

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"Você, hoje, me fez levantar mais cedo e sair deste estado-ilha de ignorância" da janaína

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"boa noite alice-ave-livre"
e
"em ti acredito
e me prostro
a essa ousadia
de florires
chutando os espinhos
à coroa"
do porfírio

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"se a tua Poesia fosse uma flor seria uma magnólia. Porquê? Porque há quem lhe chame uma flor de carne" da licínia quitério

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"merecias o prémio nobel da palavra ousada... quando a palavra ousa tudo pode acontecer... é realmente mágica e perigosa a palavra" da couvinha portuguesa

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"a narrativa é impressionante e cinematográfica (vi as cenas enquanto lia)"
e
"A tua poesia, por vezes, deixa-me desconcertado.Porque tu tens uma qualidade rara: não tens medo das palavras"
do nilson

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"já não és deste mundo. também não partiste de lado nenhum para outro nenhum lado.estás onde és. és no estado de graça que te suaviza o rosto inexistente fora do meu sonho.da-me gáudio tecer as linhasque contornam o teu sorriso." do amândio

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"Tornei-me prisioneiro, deste amar verdadeiro, que me faz um escravo, a alimentar com ardil, o desejo vadio, dessa fêmea no cio…" do carlos

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"a perfeição é azul?"
e
"precisA-se que alguém ouse. assim."
de doladodomar

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os próximos três comentários são a resposta que recebi a uma mensagem que publiquei nos meus blogues favoritos

"tu eras a gaivota pousada no electrico que passava...percebi-te pelo olhar acutilante...pelo movimento das asas, quando por fim levantaste voo, pelo cheiro a mar que inundou a cidade..." da vanda

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"Lembro.Claro que lembro. Fingi que não vi, sabendo do teu olhar cruzando o meu no ponto minúsculo do vidro (será que podemos considerar isso um olhar?). Mas vi. Tentei arranjar desculpas para te falar. Para te olhar nos olhos, mas não, tive medo. Duvidas. Será que...? Como dizer-te que passo os dias a desejar ver-te nos olhos? Como expressar com palavras simples esta sensação de vazio que tenho ao adormecer (a pensar em ti, sabias?) não sabendo se também sentes o mesmo; como expressar esta alegria ao acordar e pensar os teus olhos, sabendo que te vou encontrar? Já conheço o teu cheiro; passei uma tarde inteira na loja mas descobri. Comprei um frasco e todas as noites adormeço com ele (contigo). Sonho que estás aqui, bem perto. Fecho os meus olhos e sinto os teus cabelos. Será que também sentes os meus?" do guilherme f

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"desculpe, mas não nos vimos ontem... tenho plena certeza-pedra... porque minhas penas e meus pássaros, como minhas pernas e meus passos, são como um trem de ferro, que tem naturalmente escrito em seu DNA ordem, para não dar marcha ré, nem na lembrança do segundo que passa veloz...Que dirá, lembrar-me do dia de ontem... isso são eternidades que não ocupam espaço em minha memória volátil.Não, não nos vimos ontem, mas Venha... mesmo que aches que sou louco ou mentiroso. Não voltes atrás... Tenha coragem menina, venha... Não tente enganar o tempo, voltando os ponteiros do relógio. Você já tentou isso antes e sabes que não vai dar certo. Não, não tentes voltar o carretel das linhas, que acabas de ler, não dê marcha ré, como sempre faz, para melhor compreender. Não se faça de santa-tonta, você deitou seu charme, corpo e olhos sob outros. E vem dizer-me cínica, que “os pecados são todos meus” que devo carregar sozinho a cruz que você ajudou a construir!? Vamos, não queira ter, o controle de tudo e de todos. Arrisque-se comigo, pegue minhas mãos, sinta meu pulso, que vou fazer em ti, neste instante, a transfusão necessária de sangue-coragem, para que embarques já-já, no meu trem de muitos dias-vagões. Não tenha medo, não vai doer, não quero te ver anêmica de minha substância-sangue-coragem. Deixe-me assumir o controle até que você sinta-se segura. Vamos, venha sem olhar para atrás, deixe, estou no controle... Tome um pouco do meu elixir, que potencializa a voltagem de todas às aminésias. Venha... você vai ver ficar tudo claro como nunca viu, pois o farol do meu trem é o sol, que desvirgina às madrugadas e faz nascer todos aqueles dias que são brincantes-gargalhantes" do diovanni

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"raiz longa a enterrar-se no chão profícuo da palavra!!!!!!!!"
e
"a normalidade é um cenário dentro do qual felizmente tu não te enquadras....:)"
da isa

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"preciso voar no dicionário para entender algumas palavras do seu poema..:) Mas, antes disso, gosto sem entender. Gosto como quem gosta de uma arte abstrata.Gosto porque gosto das esculturas que vc ergue com suas palavras" da claudia

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"tua escrita é um paradoxo entre a simplicidade e a complexidade" do lord podeidon

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"Quando os olhos percorreram alvos seios erectos
já cinco extremos desbravam
floresta de desejos
Corre ainda o fruto da nascente
vulcão de teus olhos
leito de anseios"
do bufagato

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"Tomas a tristeza pela cintura
Dobra-la para trás.
E quando a libertas
Caem dela algumas folhas.
Leva-las á boca
Como se fossem sílabas
Ou beijos...Ou o remédio possivel
Para uma tarde de chuva!"
do frog

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"Sua literatura é grande demais, menina, parece que o blog é pequeno pra ela !!" da marilena

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"trepidam as palavras na minha alma, como uma peregrina sem tempo. nada receio e espalhasse em mim a tonalidade perfeita das imagem que me embriagam. à minha volta caiem pesadamente os sonhos da minha loucura..." da lena

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"Sabes, encontrei.te um destes dias na sombra dos meus pensamentos... e sorri!" do josé gomes

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"Penetrar o corpo,
deflorar um desejo
incendiar as veias
rasgar a alma
como se lençóis... fossem

o “sagrado”
cai
em forma de chuva
dos corpos
em entrega [pro]Funda..."
da betty

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"O meu corpo jaz,
a alma já não se encontra,
perdida em estilhaços,
que outrora foram coração,
a voz perdeu a força,
os olhos já cansados,
as escarpas de rosto,
esculpidas pelas lágrimas
da solidão,
e os meus lábios que frios,
selaram-se para sempre."

do gi

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eu avisei que era o post maior ;)

2006-06-19

verbo diáfano

(fotografia de phil wilde)
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acreditar na luz. perceber-lhe a cara em cada aresta virgem.

venerá-la. ajoelhar os olhos e receber a benção. juntar as mãos.

cruzar os dedos. escurecer a mente. esvaziá-la. dialogar com o vácuo.

em prostração. em declínio físico. deixar de ser. não pensar.

por um instante a sombra do altíssimo. o longe perto. tocar-lhe.

solarizar a pele. o limiar do rosto. o contorno da culpa. desviar o medo.

por ali, senhor. por onde? siga pela verdade sempre em frente.

então, não tenho de virar? se virar, mente. e depois? pedir perdão.

tomá-lo na língua. por um momento o céu da boca puro. a vergonha

extinta. agradecer. curvar o corpo em útero.

o colo ser a cabeça da serpente. o sangue um animal sem dono.

enganar a coragem. como? acreditando.

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deus é um poema na boca dos fiéis

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dedico este post ao querido amigo bill, cujo blog celebra hoje o seu primeiro ano de vida, muitos parabéns e um grande beijinho

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por motivos alheios à minha vontade, estou desde sábado passado sem acesso ao mail, pelo que apresento aqui um pedido de desculpas a todos aqueles que porventura tenham enviado mensagens que não posso ler nem responder. para qualquer assunto, favor contactar comigo via blog, porque leio as mensagens publicadas nas caixas de comentários através do template. grata pela vossa compreensão, agradeço a todos. beijinhos.

2006-06-18

unforgiving



(fotografia de johannes barthelmes)

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não ter nada para te dizer

e ser o teu nome uma ravina da memória que fumega bolas de sabão

não ser nada para ti

e ter nas costas uma estrada aberta para aportares como um barco na deriva

abrir-te as pernas

olha para mim

abrir-te a caverna habitável do meu ser

e não ser preciso entrares

ouve

não preciso que te metas em mim

para te ter

*

para o gi

2006-06-17

prefácio

(fotografia de eric kellerman)
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caminhava sem pressa por aquela hora lhe ser mais fácil não ter para onde ir. a seu lado o amor, denso, curvado, manco. à sua frente a morte, alta, esbelta, provocante. usava uma noite larga, comprida e branca. no corpo, os cigarros e outros embaraços para disfarçar más línguas. quando nasceu de cesariana, houve negligência no trato do feto por aborto de incoerência. mais tarde, quando suspeitaram da configuração dos olhos e lhe pesquisaram os genes, já as traças tinham roído a cura no armário. procuraram na fé e nas bruxas, mas não há ciência para a escuridão. e no dia do baptizado foi com água pouco benta que lhe chamaram loucura.

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isto a propósito do seguinte: há cerca de um mês, recebi uma carta nos seguintes termos:

"Ex.ma Sr.a Dr.a Alice (...), Por ocasião do sexto aniversário sobre a conclusão da Licenciatura (...), vimos pelo presente convidar V. Ex.a para um jantar de confraternização que se realiza no próximo dia ... (...)"

convite este que recusei dado já ter um compromisso na mesma data. não satisfeitos com a minha resposta, insistiram, garantinho que me esperariam. aceitei e cheguei ao restaurante à meia noite. trinta pessoas sentadas diante de copos vazios e guardanapos amarfanhados. sessenta olhos em cima de mim. e as perguntas logo disparadas: já casaste? tens filhos? como vai o trabalho? o que tens feito? porquê que só chegaste a esta hora?... e eu que detesto ser o centro das atenções fui respondendo, moro sózinha (...), trabalho imenso (...), fui a um evento literário... (mas tu gostas de ler?) tenho o meu blog... (tu escreves?????)

BLOG?... POESIA?... talvez seja melhor pedir a conta... está a fazer-se tarde... (...)

(impressão minha, ou passei de doutora a louca?)

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fumei sobre o assunto

2006-06-13

a tristeza é a cona da morte

(fotografia de jo grabowski)
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ontem fiquei tão triste que começou a chover

a pontuação que não uso e o teu rosto de água

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"Bury me softly in this womb

I give this part of me for you

Sand rains down and here I sit

Holding rare flowers

In a tomb...in bloom

Down in a hole and I dont know if I can be saved

See my heart I decorate it like a grave

You dont understand who they

Thought I was supposed to be

Look at me now a man

Who wont let himself be

Down in a hole, feelin so small

Down in a hole, losin my soul

Id like to fly,

But my wings have been so denied

Down in a hole and theyve put all

The stones in their place

Ive eaten the sun so my tongue

Has been burned of the taste

I have been guilty

Of kicking myself in the teeth

I will speak no more

Of my feelings beneath

Down in a hole, feelin so small

Down in a hole, losin my soul

Id like to fly but my

Wings have been so denied

Bury me softly in this womb

Oh I want to be inside of you

I give this part of me for you

Oh I want to be inside of you

Sand rains down and here I sit

Holding rare flowers (oh I want to be inside of you)

In a tomb...in bloom

Oh I want to be inside...

Down in a hole, feelin so small

Down in a hole, losin my soul

Down in a hole, feelin so small

Down in a hole, outta control

Id like to fly but my

Wings have been so denied"

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(i feel like alice in chains)

2006-06-12

a raíz quadrada da insolência



(fotografia de josé marques lopes)

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tu és

ontem em mim

seres assim

uma espada rente aos tímpanos

um batráquio no nenúfar do amanhecer

enquanto arrumas os testículos

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achas isso normal?

2006-06-09

para mim

(fotografia de jürgen buch)
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"repouso a boca no silêncio

da púbis

banho a língua na tua

carne

e no meu peito

concluo

o movimento

dos teus lábios"

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o poemar ofereceu-me este bonito poema
muito obrigada, adorei, um beijinho

2006-06-06

o hímen das aranhas

(fotografia de jorge adn costa)
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nesta terra, o zumbido das vespas ocupou o lugar das giestas.
a tarde veio aqui deitar-se e por toda a parte sossobram lençóis de luz.
não há domínio no horizonte de fogo que a vence.
aragem, se a houver, come-a os frutos e o pólen como estrume.
e o rabo do diabo é a única estátua erguida ao firmamento.
quando inês chegou a manu, todas as casas eram demasiado baixas para a sua estatura.
contra a claridade rubra, a sua brancura sujava o cenário de chocolate humano.
e o cheiro daquela gente imunda agoniava-lhe os gestos despropositados.
finalmente, o mestre veio libertá-la das pessoas escuras.
já dentro da cratera, aplicou-lhe ervas sobre a testa e separou-lhe os joelhos para aparar o lago.
o templo de joão era fresco e os animais pastavam sem dificuldade.
era tudo tão esquecido de deus como adivinhar o destino nas borras de café.
e a espessura do pénis dele era a medida exacta para a alvura de inês.
depois da sirene, ele retirou o chumbo da esfera dela e entupiu-lhe a garganta de esperma.
ela rejeitou o único líquido da terra e anunciou ao mestre quero que o verão me arda.
*

to mourad

2006-06-04

a despedida

(desenho de picasso, guerra e paz)

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planeio matar-me, meu amor.
a velha que mora no andar de cima tem o vento enjaulado no frigorífico e a conta da luz lá pousada. o calor contou os degraus e subverteu a física. subiu a descer.
o rapaz da drogaria veio hoje buscar os bicos do gás e nem sopa tenho para mastigar os pobres.
há a varanda e a ria e a geografia que o arquitecto soube enquadrar. mas sabes como tenho medo das alturas.
estive a ver o extracto da saudade e as folhas em branco que não vou rasgar. cancelei o cartão do banco e varri o dinheiro para debaixo da simpatia.
não tenho ninguém a quem avisar. vou marcar a data do meu funeral. no domingo, à hora do chã.
escolhi um caixão já usado e na vala comum é mais barato.
levo as calças da tua mãe e o tronco nu. se me constipar, volto para coser as tuas meias e deixo-te as minhas mãos na caixa do correio.
a chave? vou entragá-la à mulher do supermercado. coitada. cheia de varizes e molas no soutien.
vou usar ácido. fumo um cigarro e conto até dez. lembras-te? finjo que são os teus lábios e bebo devagar a tua boca.
quando morrer, quero ter um telhado e um sorriso abafado na casa principal.
ouve. não leves tulipas nem lágrimas. as flores crescem dentro de ti primavera encantada. deixa os vestidos secarem pretos e as nódoas treparem floresta.
se vieres, traz-me uma quadra que diga gosto de ti.

*

acreditas que a angústia entrou pela janela do meu quarto?

2006-06-02

a indiscreta

(fotografia de jan bengtsson)
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o teu corpo grita. cada osso um homem que te amou. arqueias os pés e foge o ar da boca. quase mata. um velório. eis o que retratas. os teus ombros no chão. a cidade a ver tudo. olha. a música entoa os teus passos. ouve o eco. os ossos. os homens. salta. tens a morte nos braços e não podes. a cidade escuta. tantos vermes. o teu pescoço uma estrada. quase uma rainha. quase nada. e as tuas mãos que não param. o ar que não mata. só foge. o homem que não ama. o ego que não cai. o teu pescoço é o caminho dos vermes em cima do palco. enquanto a música te sacode as ancas, a cidade vê borboletas e bate palmas. a voz que salteia os passos. quase rei. quase fada. e um beijo na boca. no homem que não ama. cai o eco. fica o teu retrato.

*
a quem representa fora do palco