2006-07-25

under cover

(fotografia de autor desconhecido)
*
*

fully clothed i stand
invisible my lying naked body
laughing i greet
invisible my crying bared soul
loudly i shot
invisible my tiny whipering voice
fast i run
invisible the fairy steps i make
higher i jump
invisible the hardness of the fall
*
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from london
*
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(a quem souber o nome do fotógrafo, agradeço que me informe para atribuir o respectivo crédito)

2006-07-23

tatuagem




não te chamei
não te pedi
vieste
pela margem da fala
alice te abençoo
neste tremor de palavras aflitas
vejo-te na paz da escuridão
e não conheço o teu rosto
mas a palavra
essa entidade divina
é capaz de nomear um rosto
semear melodias
na surda ausência do grito
alice do país das ignotas maravilhas
alice dos mágicos amanheceres
tens em mim
a lágrima
o extremo do sorriso
e estas mãos suplicantes
que te abençoam
ao chegares anónima
à página em branco
onde começam todas as utopias
e a palavra ama
como uma boca sedenta de luz
quando a treva
ameaça com o seu olhar de sombra tombada
diz-me alice
que me queres à cabeceira dos sonhos
que me sonhas no prado polvilhado de estrelas
alice vem até mim
no doce ondular
da madressilva
a minha morada
cheira a tílias
e o meu sangue chama por ti
num fio de orvalho
mostra-me como pulsa a tua alma
inventa-me no presente
aloja-me no segundo coração
onde o passado a que pertencias
se transformou na fonte
cuja àgua limpida e primordial
apaga todos impossíveis
dá-te a conhecer na palavra mínima
vem até mim na nota máxima
(...)

*

autor: Alberto Serra

2006-07-17

"angels in venice"

(imagem de nuno santos)
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*

Caminhamos sempre pela neve tu e eu.
Os pés são feridas de uma brancura enorme e nefasta.
Os pés são chagas vivas que reluzem à luz morna da fogueira.
Viemos de um sítio a que chamamos norte e princípio.
É o lugar mais límpido onde tudo começa.
Dá-me a tua mão, disseste.
Dei-te, e contemplamos as estrelas.
Onde gostas que te toquem, perguntei.
Gosto que me toquem nos sonhos.
E assim foi.
*
*
toca-me

2006-07-15

agradeço este poema

(fotografia de paula neves)
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a alice mora aqui
faceira e redondinha
vai para a fonte velha
à água cantarinha.

não parte a bilha, não
nem vai cedo, ligeira,
caminha devagar
e vai namoradeira.

no meio do caminho
encontra um fauno jovem;
de pã a flauta encanta
e as cotovias fogem.

a tarde vai caindo
na flora clara e virgem
com a luz espreitando
na noite de salsugem

quando raia o dia
o fauno se despede
do corpo oferecido
e que a ramagem pede.

a alice que mora aqui
vem de (*)
se vem do rio (**)
vem com sabor a mel

atentem nesta história
pode ser verdadeira
se tiverem memória
que vela a vida inteira.

alice ou capuchinho
cada qual com o seu lobo;
fauno, juan, casanova
todas levam seu cobro.

no país das maravilhas
assim vai, vem, alice
com a bilha sem água
mas rosto de felice.

e por aqui me fico
já basta tanta trova
não vá alguém pensar
que sou uma águia brava.

autor: José Félix

*

(*) omissão do nome da cidade do texto original
(**) omissão do nome do rio do texto original

2006-07-11

uma semana não basta

(quadro de paula rego)
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Pelo lado errado do dia seguem em bandos as palavras rente às almas que num beijo migram de uma boca para outra boca. Tenho a sebenta inclinada no sumário do fim do mundo como cábula precisa onde se inscrevem os mil demónios do meu juízo. Estou sentada no banco do parque a ver o lago a passar por entre as folhas que cobrem de estrume a minha saia cada vez mais magra. Estás deitado com a cabeça encaixada no meu colo como um eixo azul do céu que refulge no centro da fornalha. És talvez um sem abrigo à procura de Deus no ventre de uma estranha que veio dar pão seco aos gansos selvagens. Sou talvez uma pena da utopia possível de um cisne que com o bico agarra o bico de outro cisne e desenha o teu coração imperfeito.

Do lado torto da vida avistam-se miragens indizíveis como sonhos que acabam por ser infinitos neste vale de lágrimas. Chegaste de madrugada com a roupa rasgada e o cabelo desmaiado nos ombros do jardim. E disseste que eras espécie rara qual flor amachucada um pouco descuidada faminta de ternura. Eu não disse nada quando te aproximaste com as tuas mãos muito grandes capazes de encestar o planeta inteiro no meu peito tão frágil. Cambiamos saliva para acalmar a garganta em chamas e o verão descer em nós como o fogo que ardia na paisagem. Mudei as pernas de lugar e fiz uma cova no regaço até adormeceres sob o meu toque afinado pelo estertor da água. Li-te uma página do meu espírito com a serenidade das coisas que ambos sabíamos imortais.

No capítulo incerto do livro mais sábio perecem os suspiros da última noite em que as vozes dos olhos falaram. O verbo incorrecto do amanhecer deita-se perto das montanhas líquidas só ao alcance do peito das mulheres. Começa pelo sol parado sobre a tua cara como cimento colado ao teu desassossego. É um raio de luz imparável ou um relâmpago que rompe este ar irrespirável e te faz sofrer. O calor depois sufoca a tarde enquanto esperas pela tristeza como única promessa fiável que sucede à claridade. Choras sobre a errância pelas impressões digitais dos teus dedos alisantes tão macios que quase matam a inquietude. Choras e há uma criança que corre na falésia de um abraço que derrota a mais ténue crispação. Se encostares os lábios aos meus flancos e ouvires o mar entrar na tua máquina de escrever deixa-o lavar-te a dor.


*

para o david

2006-07-05

dedicado ao legível

(fotografia de robert farnham)
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foi então que as árvores respiraram
sustentando a queda dos astros
havia pernas a pisar os ramos
indiferentes à dança das trevas
havia faróis a bailar
por entre as sombras rasas
e cabelos humanos
nos troncos da inveja

*

como explicar o desprezo do espaço?
entender o terrorismo das feras diante dos teus braços?
perceber a ignorância dos patos a debicar cristal?
compreender a estância de zelo que a água empata?
decifrar a linguagem cega dos teus olhos parvos?
definir nas plantas a génese do teu abraço?
*
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escrito a 4 de abril de 2006

2006-07-03

último poema

(fotografia de anna simonja)
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quando os teus olhos se abrem
o mar dilata a terra em ondas brancas
repara
não é quando abres os olhos
fechados cobrem horror e espuma fétida
cosidos na cara tecem dunas subaquáticas
palmos de areia pálida
raízes secas e rugas desidratadas
é a tempestade que as rega
o infortúnio vence as marés cheias de ócio
a sede avança sobre a dormência ingrata
os monstros marinhos rompem as pestanas
e começa na boca
quando os teus lábios se abrem
repara
não é quando abres os lábios
fechados tapam cavernas naufragáveis
cosidos no rosto salvam as palavras
verbos fecundos que atravessam os rios ágeis
poemas férteis por entre as cáries
é o sal que os mata
o torpor das algas na garganta
o cume das vagas redundantes
o cu da noite ali deitado
e acaba nos pulsos
quando as tuas mãos se abrem
repara
não é quando abres as mãos
fechadas cercam oceanos
cosidas no peito são duas caravelas
é quando os teus olhos e os teus lábios se abrem
que as tuas mãos voam

*

acrescento importante comentário de vasco pontes, a quem agradeço a referência: "De Camões a Pessoa - AViagem Iniciática (SeteCaminhos), com pinturas e textos de Ellys e poemas de Maria Azenha, é o livro que será apresentado na Casa Fernando Pessoa no próximo dia 17 de Julho pelas 18h30"