2006-05-29

o fim da metáfora

(fotografia de mário galante)
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ele bebeu uma garrafa por cada mulher que traiu. agarrava no dorso de vidro com força. encostava aos lábios com fúria. engolia com pressa. pousava no chão com sede. e escrevia nos rótulos os nomes delas. a espuma a lamber as letras. não escreveu o meu nome. perguntei-lhe se escreveria o do menino. disse que não. foi dizendo sempre eu sou uma merda e bebia. foi repetindo eu fiz tantas coisas feias e bebia mais. até que as mulheres acabaram e haviam ainda garrafas cheias no chão. vazias e cobertas de nomes lambidos. começou a descascar comprimidos. escolhi este dia para morrer, disse, e tomou os comprimidos. um por cada mentira. cobria a palma da mão e engolia. eu fumava. eu já estava morta ainda ele se matava. e a náusea subiu-me ao pescoço sem carícia. era tudo muito difuso. a persiana corrida. a luz mal quadriculada. as minhas pernas bambas. a sanita do outro lado da casa. ele saiu enquanto vomitei. corri tanto. ele arrancou com o carro. eu segui-o sem cinto. não contei os quilómetros. excedi a velocidade. o semáforo ficou vermelho. ele não travou a tempo. nunca o fez. eu estava nesse momento a ultrapassá-lo. vi a cabeça dele bater no volante. um fio de baba lamber-lhe a barba. o meu nome escrito no adeus. as luzes do carro tão claras. o barulho do motor tão doente. o semáforo ficou verde. escolhi este dia para morrer, disseste. deixei-te dentro do carro em liberdade.

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qscaremc

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acrescento o comentário do legível que adorei, obrigada, beijo

"... quando os paramédicos chegaram, limitaram-se a cumprir o ritual em casos desta natureza; sem pressas, que o carro nem sequer ficara de modo a dificultar o trânsito.Ela, distante e absorta (quem sabe se divagando sobre garrafas, nomes, comprimidos, cintos e semáforos ou sobre nada de concreto), nem deu que os maqueiros retiraram de dentro do veículo, o corpo a quem ela tinha dado à liberdade.A noite fechou-se de vez sobre a cidade."

30 comentários:

Anónimo disse...

Maravilhoso texto menina!
Maravilhoso, pelo que vejo, acho que farei daqui uma das minhas moradas.
Beijos.

Anónimo disse...

Alice,

menina, eu entro e saio daqui várias vezes ao dia, sabia? Sempre encontro o que preciso e mais um pouco... Os recortes dos dias, dos cotidianos sem glamour, do café com pão.
E ele teve seu espetáculo à parte, entre os restos da noite e a vibração do choque ainda no ar... E seu nome imortalizado pelo momento-ápice-clímax da vida-restos dele.

Bom... Muito bom te ler!

Beijoooooooos,
abraço forte,

Jana

isabel mendes ferreira disse...

a alegoria perfeita. a queimar a realidade.


suspendo-me.

para voltar. amanhã.

perfeito. Li.

bjo.

Anónimo disse...

Amargamente forte, com um ar de simplicidade angustiada em cada palavra...
Vi o sinal vermelho, senti o ultimo pensamento, criei cada momento descrito...

Linda semana pra tu...

:*********

Licínia Quitério disse...

Podes dar uma espreitadela no meu Sítio? Espero que gostes. Eu estou muito longe de ser crítica literária, mas "sinto" que a tua escrita é excelente.
Beijinhos.
Licínia

kikas disse...

Terá sido mesmo o fim da metáfora?por ti em gostaria que fosse...
Grande beijo minha querida

lena disse...

um texto muito forte e amargo, um texto onde as palavras tocam e arrepiam.

bem escrito Alice, escreves como gosto de ler
muitas vezes escrevo assim, a minha fome e sede de palavras entre metáforas.

gostei de te ler .

vi o sinal vermelho cair e senti a liberdade dentro do carro no dia que se escolheu para morrer...

o meu beijo neste início de semana, que comece bem e com os sinais verdes da cor da esperança, abraço-te linda menina, com carinho

lena

Helder Ribau disse...

como é possivel escever tão bem? é optimo estar aqui

Dani disse...

Deixas-me sem pelavras.
Será talvez uma das frases que mais me ocorre, quando te leio.
Gostei muito deste fim/príncipio de algo.

Beijos

Nilson Barcelli disse...

O teu conto descreve uma história brutal, brutalmente contada. E bem, porque a narrativa é impressionante e cinematográfica (vi as cenas enquanto lia).

Beijinhos.

Paixão disse...

Auch!

Boa escrita...

Beijocas
Boa semana;)

Anónimo disse...

sua palavra carnosa e densa, neste e em outros textos, alimentam sempre a minha fome; particularmente hoje viajei neste texto, vi-vivi cada cena e, no final, provei o gosto bom e amargo da liberdade que foi descrita aqui. beijos e boa semana.

Susie disse...

Está muuuuito calor, Alice!
Espero-te bem
Um beijo a derreter.

Susie

Sofia disse...

Muito forte a mensagem, forte demais! Tão triste.

Espero que estejas bem querida.

Um bj

isabel mendes ferreira disse...

eu "juraria" que tinha estado aqui pela madrugada...e comentado...bom...coisas de insónia.


então é assim: quando um texto é tão impositivo e soberano de que serve acrescantar uma virgula?

deixo um ponto final. sobre alguns dos comentários aqui expressos.

escreves mt bem LI...isso já sabes. e a dor dá contornos à lucidez.


boa tarde. :)

Alberto Oliveira disse...

... quando os paramédicos chegaram, limitaram-se a cumprir o ritual em casos desta natureza; sem pressas, que o carro nem sequer ficara de modo a dificultar o trânsito.
Ela, distante e absorta (quem sabe se divagando sobre garrafas, nomes, comprimidos, cintos e semáforos ou sobre nada de concreto), nem deu que os maqueiros retiraram de dentro do veículo, o corpo a quem ela tinha dado a liberdade.
A noite fechou-se de vez sobre a cidade.

beijos poéticamente legíveis.

Vanda disse...

...só te abraço, as palavras estão escritas há muito...

forte.

Van

Simone disse...

Alice...
Q lindo...
Sem palavras...
Ler-te é muito bom mesmo.
Reli 4 vezes este texto.
Meus parabéns. Vc fez entrar luz no meu dia.
Bjs

Lagoa_Azul disse...

Alice, querida amiga

Hoje vim amar as tuas palavras,
Faz-me falta preencher de amor, nem que seja em palavras tuas...

Um beijo com muito carinho.

Zeze disse...

Ola Alice
Bom texto e boa descrição!
Beijoka

porfirio disse...

:
e
como espumam
as palavras
-_-
.:.
\./
aqui

bjo

Anónimo disse...

Não, amiga Alce! Não venho aqui, plantar na madeira da janela de tua casa, flores-palavras elogiosas ao acaso. Venho mesmo, porque tenho antes, necessidade de regrar os jardins de minhas idéias. Às vezes leio seus textos, e, não sei bem o que comentar. Fico ali, ruminando e pastando como boi, suas inquietudes diante da vida. Tudo que escreves, transpira você, embora eu saiba; que nem sempre é você que retratas. Depois, que me farto de suas linhas, me vem aquele silêncio, necessário; a quem por enquanto se bastou. Mas como um vício, sei, que voltarei sempre, para mais uma dose, mais um trago, mais uma picada nas nas artérias de meu pensamento. Quando, por vezes, você enxergar minhas pegadas, dentro de sua casa, e eu, não tiver deixado, plantada em seu quintal, minhas palavras-flores, é porque fiz delas dúzias bouquets multicoloridos, para presentear a mim mesmo e a outros com os quais tenho compartilhado suas letras. Eu também amiga, sinceramente, não sei nada de literatura, sei apenas, que tenho dilatada em mim a emoção, pelo convívio com as palavras-pessoas.

obs: poderia passar-me no e-mail, seu endereço de correspondência, para que eu possa enviar-lhe de presente, meu CD – MANDALA SONORA? Mandei para Janaina e Marcos Pardim e gostaria muito que você também recebesse um. Saiba, que a cada dia, nutro, ainda mais meu carinho, por todos vocês.

Anónimo disse...

A escrveres sempre bem.Bom texto. Boa semana para ti e tudo de muito bom.

Rui disse...

Ah, a bebida... que nos leva com o adeus.

Obrigado Alice.

inBluesY disse...

"ele não travou a tempo. nunca o fez"

Como gosto ... é muito dentro de simples palavras muito.

Um Beijo linda

Vanda disse...

Deixo-te aqui e agora o meu beijo da noite.

Porque nunca é demais.

Porque me lembrei de ti, agora.

Van

lince disse...

Que dizer?... Bom texto!? Só? É mais que isso! Parabéns. Boa semana.

Anónimo disse...

De blog em blog acabei caindo aqui, e não é que tive uma surpresa muito boa. Adorei o texto, a construção e o enredo são muito bem construídos. Coisa boa de se ler. Voltarei!

Anónimo disse...

Olá Alice!

Sempre um prazer enorme fazer uma leitura por aqui! Dou por mim a imaginar o "antes" e o "depois" do teu conto...

Grande beijo e boa semana, aguardo impaciente a tua próxima inspiração!

Princesa

Vasco Pontes disse...

Olá alice,
Escreves bem. E com sentido. (Digo eu...)