2006-05-16

última parte de "vidas vazias"



sara deixou cair o poema na cama
era sempre o instinto que explicava o caminho seguinte
o único possível
o único exequível
assim como hugo havia procurado a mama para reter a fome
e agora dormia saciado
também os dedos cegos de sara
encontraram fome a dilacerar-lhe o sexo
e começaram a comer desesperadamente
sara respirava menos agora
já não tinha medo
podia entregar-se à sede que escalava da nascente do seu corpo
deixar o primeiro rio do mundo correr pelas estrias da pele abaixo
ignorar a brancura pura que desmentia o sangue nos panos das coxas
e esfregar-se apenas
mais tarde
os homens inventariam termos técnicos para definir o amor
mas nesta época azeda
não havia inteligência sobre a terra
havia impulsos genéticos
tensões primárias
fome na criança e no sexo da mãe
sede nos dedos que o comiam
água lisa a brotar sem reservas
água branca a violar o sangue e a lavar as pernas cansadas
olhos inquietos a bulir no rosto dela
olhos irrequietos a girar nas covas sagradas da cara dela
e segredos incontados a desenharem-lhe a boca
segredos inconfessados a delinearem-lhe os lábios
e asas a contornarem-lhe as feições
asas curvas a guiarem o olhar invisual das unhas
dentro do segredo de sara


*

(fotografia de mesa)

18 comentários:

Misantrofiado disse...

Extremamente lindo e inteligente.
Gosto de me sentir em espeiral, sempre que te venho ler!
Bem hajas

Paulo Silva disse...

Querida Alice
Sempre mágnificos os teus textos.
Perco-me a ler estas belas maravilhas.
Um beijo.

porfirio disse...

hélas alice

:
de facto
o frio na espinha
ao viajarmos na
"espiral medula"
deste texto luminescente
que sobrevive escavando
cada vez mais
os corpos
.

bjo

banalidadesdebase disse...

Bonito, belo , belissimo

posso saber como continua?

:)

Vanda disse...

olhos segredos asas.

um beijo. meu.

Van

Anónimo disse...

Febril, tenso, ainda não formei as palavras para seguir em pensamentos...
Um rastro de curiosidade segue todas as palavras, uma linha que passa por todas as letras.
Maravilhoso.

Ainda voltarei para saborear mais.

Lindo dia para tu.

:***

isabel mendes ferreira disse...

perfeito. claro....como não????


________________________Li...sem querer apaguei o comentário que hoje tinha deixado no Piano..as minhas desculpas....é que isto de ter moderação é "chato"...e já me aconteceu por várias vezes...
renovado pedido de desculpas.

beijo.
e sim está tudo bem. como sempre.

AlucarD disse...

bem.... como sempre a escrever coisas belas!!gostei...
beijos pá ti linda*********

Sofia disse...

os teus textos transmitem tanta força e tanta vida que até impressiona. consegues falar das coisas com uma beleza incomensuravel!

um bj

Anónimo disse...

Alice, querida...
Novamente invado suas páginas imaginadas brancas, esse espaço virtual que você singularizou com toque, palavras, dedos.
Há algumas semanas atrás, eu escrevi um texto para o Brutti que falava sobre essas duas fomes primárias que regem o homem: a fome de alimento, a fome-corpo-prazer. Essas duas fomes são os pontos de renovação do desejo, de negação da quietude, de negação da morte. Enquanto houver alimento para o corpo, seja carne, seja pão, seja outro corpo, conservaremos o ciclo necessário da renovação do desejo. Somos seres de falta, que sempre buscam a sensação de preenchimento, de plenitude, mesmo que momentânea. Rasgo a carne com os dentes pela comida, rasgo a carne com a língua pela fome dos fluídos e hoje rasgo um pouco de suas linhas com os olhos, com a fome descoberta agora, fome outra adicionada às minhas naturais... Fome de poesia, fome de resignificação, de reinvenção do nosso cotidiano opaco e rotineiro.
Mais uma vez sacio momentaneamente minha fome de palavras e como ser de falta que sou, retornarei sempre e certa à sua alcova, à sua mesa, às suas páginas de poesia pura como azeite extraído, dourado, brilhante.
Beijos, abraço forte

Jana

Joaquim Amândio Santos disse...

Por aqui se levam a spalavras até à exaustão.
traquinas no seu recato, ousam esconder, por vezes, o sorriso que as atravessa, por se saberem padroeiras de um êxtase humano sob a forma de palavras!

Alberto Oliveira disse...

Sara Sewell perguntava-se a si própria porque não tinha acompanhado a irmã gémea no post anterior a este. Ensaiava um argumento, uma desculpa e tudo lhe parecia sem fundamento. É verdade que a despeitava não ter conseguido engravidar como a irmã; mas com franqueza! Nem o sobrinho tinha tido oportunidade de conhecer!
Deixou-se ficar para ali,ultrapassada, desconhecedora de segredos e mistérios paridos na sua ausência.
Um pássaro enorme, passou rente à sua cabeça. Pareceu-lhe ter ouvido um murmúrio alado «Sara Sewell... minha irmã... »


beijos muitos.

escorpiaotinhoso disse...

Alice,

Que bem que continuas a amar e dar vidas às palavras...

ET

Paixão disse...

Obrigada pelas visitas frequentes. Os teus comentários são um doce :)

E que texto forte tens aqui, muito bem escrito. Com uma doçura crua e fria. Gostei:)

Beijinhos

Lagoa_Azul disse...

Querida amiga,

Tuas palavras sempre arrancadas do fundo da alma e que preenchem o vazio do meu espirito...

Perdoa a minha ausencia, mas só na segunda feira consegui começar a respirar, afazeres profissionais esgotaram-me mas estou de regresso, obrigado de coraçao pela preocupaçao,

Um beijo com muito carinho, aquele carinho de muita amizade de quem realmente está ausente mas nunca esquecida...

lena disse...

vim com o cair da noite, mas não quis ir sem te vir ler, começar onde te deixei, reler tudo de novo e deliciar-me com o que partilhas
excelente estas "vidas vazias" a tua escrita é intensa, profunda e consegue fazer brotar sensações que nos preenchem

viajei nos segredos de sara e senti o seu olhar inquieto

beijinhos para ti doce menina e abraço-te com ternura

lena

amigona avó e a neta princesa disse...

Amiga deixa que te retribua as palvras carinhosas.. sou eu que, sinceramente, me sinto previligiada por conhecer gente como tu...
ler as tuas palavras tão fortes e tão intensas é um prazer redobrado cada vez que aqui venho - pelas palavras, pela mensagem - Bem hajas!...

Mia disse...

nao tenho palavras...

um beijo terno, querida Alice