2006-09-13

flores da alma



imagina que a tua cabeça
é um gira discos
e que o teu comportamento

é a agulha em cima do disco
quando estás bem contigo própria
ouves uma bela melodia interior
quando te portas mal
a música desafina


querido antónio,
muitas vezes tenho falado de ti e contigo. é hoje a primeira vez que o ponho por escrito. morreste. ainda sinto o teu olhar sobre o meu medo. o aroma da fragrância da tua barba. ainda me ajudas. penso no que me disseste. e tento afinar. tu sabes. não é fácil. cabecinha destravada a minha. foi há três anos. vinha eu do banco. setenta e cinco kilómetros de asfalto. a digerir a notícia. aquela palavra a rolar-me pela cara abaixo. cremado. fiquei muito zangada. isso não se faz. não se morre de um dia para o outro. não devia. e frustrada. e com raiva. a agulha aos saltos. o disco todo arranhado. o medo todo escancarado. o diabo à espreita em todo o lado. irreversível. a vida é mais difícil sem ti. dói. tentei dizer-te. mais tarde. num dia de chuva. como hoje. no cemitério. em vão. fazes-me bem. não te deixarei morrer. em mim. bela melodia.

*


talvez uma só palavra
talvez uma só missiva
pudesse mudar a agulha
de um coração à deriva

carlos tê, in "ninguém escreve à alice", in álbum avenidas, by rui veloso

*

(fotografia de márcio farias)

8 comentários:

Anónimo disse...

Agulha extraindo, canção da saudade... Sei que dói amiga. Feliz ou infelizmente, ainda não sabemos, o fato é que um dia nos integraremos ao mistério. Espero que fique bem, você apesar da distância, é pessoa querida para mim. Não sei porque. Abraço n´alma.

Licínia Quitério disse...

"Dá-me um monossílabo mágico que me acerte o passo. Salva-me já que me morreste."

Comovidamente.

APC disse...

Faz muito tempo que não lia nada que me pusesse esta expressão. Não a vês (nem eu), nas é a tal... Aquela que nos cala uma emoção porque o silêncio é de ouro, e que nos deixa em mudez exausta, de sentir algo tão triste que, ainda assim, foi feliz nos sentidos que gravou a fogo nas tábuas da memória.

kikas disse...

Mesmo quando se morre fica-se vivo para quem nos ama.
Essa agulha que falas, se "limpa" mantem a melodia na tua cabeça.

Vanda disse...

Escrevi.

Ha tantas formas de partir.

Beijo

Van

A disse...

Todos somos egoístas na expressão do nosso sentimento de perda.
Todos sofremos por achar que a falta que alguém nos faz é infinita.

Um dia acordamos e sabemos que esse alguém marcou o seu espaço cá dentro.

E não morre.

Escrever sobre a Morte e a Perda de alguém que amamos, deum amigo, é algo que só grandes como tu, Alice, no teu País das Maravilhas, consegue...

Beijo enorme

Anónimo disse...

Sempre uma emoção por aqui...
Sei que dor é essa aí!
Dois anos, três vozes, em uníssono.
É duro, tal qual uma porta de vidro ao nariz: choro e sangue sem controle...

ManivelasdaMente disse...

A beleza da dor, a fragância da saudade, o beijo enviado para o além, a palavra que faz amor com a palavra... Lindo!