2006-08-18

para o duarte



eu: sabes o que é o amor?
tu: sei, o amor é gostar muito
eu: e sabes quanto é muito?
tu: muito é mil
eu: então, o amor é mil?
tu: o amor são cinco milhões

é assim que uma criança de cinco anos nos desarma irremediavelmente
gostava de poder reter numa frase, dado que não me aventuro a ousar reter numa palavra, a sensação de ti comigo
ao meu lado jaz um dicionário velho, grosso e pesado que a minha mãe me deu para descobrir as palavras todas e nem ele encerra tal sabedoria
procurarei escrever sem reservas, ainda que só o teu olhar austente tal prodígio
quero, antes de mais, dizer-te que, para mim, foi um passo em frente na vida conhecer-te (o que aconteceu no dia 6 de abril de 2006)
disse-te que não conheço outras pessoas da tua idade e, talvez por isso, não sabia como seria eu contigo
e foi por não saber ser eu com alguém maior do que eu que procurei purificar-me dessa fragilidade devorando as sobras da tua idade na cozinha
o teu pai disse-me mais tarde que não havia necessidade de eu ter tido todo aquele trabalho, mas ele ainda não sabe das lides domésticas no meu sotão mental
repara que é extremamente complexo escrever-te sem recorrer aos substantivos maiores que a literatura oferece
no momento, só me ocorrem nomes próprios como grandeza, infinito, sapiência, vida, violência, pureza e extinção
como efectivamente não sei falar de ti em mim sem me socorrer destes desígnios, vou agora tentar, repito, tentar, decifrar-lhes o sentido, mais para mim do que para ti, honestamente, perdoa-me o meu ego
sabes, d., a alice é uma pessoa que se sente pessoa e que se sente humana antes de tudo o resto que como pessoa sente
e a humanidade da alice não deixa espaço a verbos maiores do que ser
e ser humana, sabes, é para a alice uma tarefa tão escorregadia como lavar o frigorífico
a alice é uma pessoa frágil, quebra com a facilidade de um copo ensaboado
mas é a essa fragilidade que a alice vai buscar a força de um abraço
e um abraço, d., é a solução de muitas perguntas sem resposta
e nesta resposta de um metro e dezassete cêntrimetros encontrei a tua grandeza
não é nada fácil falar do infinito, sabes
porque reside na alice a dimensão do universo e simultaneamente a inutilidade do pó
desculpa interromper para pedir perdão ao pó pelo insulto
eu podia acrescentar o adjectivo inteiro ao universo, mas duvido da sua homogeneidade
oxalá também tenhas um dicionário igual ao meu ao teu lado quando leres isto
as mães são peritas em dar aos seus filhos coisas que nunca lhes farão falta
é aí que quero chegar, d., à eternidade que a descendência e só ela aufere
e é aí que tu és infinito
agora tenho de falar primeiro sobre o desconhecimento
quando não sabemos algo, não sabemos que desconhecemos algo
e quando algo se sabe, sabemos que o desconhecíamos até então
entre o saber e o conhecer existe ainda assim algo desconhecido
e é nesta fronteira entre a realidade e a poesia que fica a tua sapiência
confesso que me sinto inteligente a construir estas afirmações
mas as minhas palavras nada valem diante da obra de ossos e sangue que pulsa no teu corpinho lindo
fazer um filho como te fizeram é a vida em ti
seres filho da vida é a tua violência, é simples
porque o mundo onde nasceste não se compadece com a tua inocência
o mundo, d., ensina a destruir a tua pureza
és ainda um tempo de infância, meu querido
e essa espécie de amor está em vias de extinção
agradeço-te o beijo que deixaste no meu coração


*

(fotografia de ricardo frantz)

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