2006-08-18

o grito



para o rafael

a noite entra devagar no dia
tacteia-lhe o ventre como um amante
sobe-lhe a extinção da pele em sombras
lambeo-o de sal no princípio do medo
abre-lhe os fios que acordam as narinas fundas
rasga-lhe as meias que desbotam turvas
percebe-lhe a liquidez monótona
descalça-lhe os dentes pretos
e começa a matá-lo

o sono é um monstro sem dedos
ataca a urina das crianças tenras
tira-lhes as cuecas em silêncio
bebe-lhes o resto da vida em prantos
come-lhes a esperança de boca aberta
quebra-lhes o olhar sem destino
rouba-lhes glóbalos brancos
converte-lhes sonhos em células
troca-lhes os orgãos por ferros velhos
e começa a matá-las

a angústia rodeia a tristeza
toma-lhe os pulsos como algemas
bate-lhe pregos com martelos
perfura-lhe as tripas de aço
incendeia-lhe as esquinas
aparta-lhe as espinhas
aparafusa-lhe os pensamentos
pendura-lhe incertezas
promete-lhe o espancamento
e começa a comê-la

a escuridão penetra a réstia de luz
lança-lhe cabos presos
segura-lhe os braços pelos nervos
agarra-lhe a cintura em vespas
prende-lhe as tensões latentes
aguça-lhe o instinto ausente
coça-lhe os cotovelos
decompõe-lhe as vísceras
esfrega-lhe os tímpanos
e começa a comê-la

a madrugada aborta a manhã
rompe-lhe as mamas lisas
limpa-lhe os sentidos
lava-lhe as mãos em sangue
cicatriza-lhe as feridas do tempo
solta-lhe os cabelos lisos
veste-lhe roupa fresca
acaricia-lhe a testa
jura-lhe amor eterno
e começa a beijá-la

*

(fotografia de hugo amador)

1 comentário:

porfirio disse...

olá alice, saudades muitas!

:
regresso aqui e alojo no peito
esta bala que de tão fulminante
ridiculariza a prata
e borbulhante se insinua
à criança por choro parada
nas barbas do CORAÇÃO-SALIVADOR

bjo grande