2006-07-11

uma semana não basta

(quadro de paula rego)
*
*
Pelo lado errado do dia seguem em bandos as palavras rente às almas que num beijo migram de uma boca para outra boca. Tenho a sebenta inclinada no sumário do fim do mundo como cábula precisa onde se inscrevem os mil demónios do meu juízo. Estou sentada no banco do parque a ver o lago a passar por entre as folhas que cobrem de estrume a minha saia cada vez mais magra. Estás deitado com a cabeça encaixada no meu colo como um eixo azul do céu que refulge no centro da fornalha. És talvez um sem abrigo à procura de Deus no ventre de uma estranha que veio dar pão seco aos gansos selvagens. Sou talvez uma pena da utopia possível de um cisne que com o bico agarra o bico de outro cisne e desenha o teu coração imperfeito.

Do lado torto da vida avistam-se miragens indizíveis como sonhos que acabam por ser infinitos neste vale de lágrimas. Chegaste de madrugada com a roupa rasgada e o cabelo desmaiado nos ombros do jardim. E disseste que eras espécie rara qual flor amachucada um pouco descuidada faminta de ternura. Eu não disse nada quando te aproximaste com as tuas mãos muito grandes capazes de encestar o planeta inteiro no meu peito tão frágil. Cambiamos saliva para acalmar a garganta em chamas e o verão descer em nós como o fogo que ardia na paisagem. Mudei as pernas de lugar e fiz uma cova no regaço até adormeceres sob o meu toque afinado pelo estertor da água. Li-te uma página do meu espírito com a serenidade das coisas que ambos sabíamos imortais.

No capítulo incerto do livro mais sábio perecem os suspiros da última noite em que as vozes dos olhos falaram. O verbo incorrecto do amanhecer deita-se perto das montanhas líquidas só ao alcance do peito das mulheres. Começa pelo sol parado sobre a tua cara como cimento colado ao teu desassossego. É um raio de luz imparável ou um relâmpago que rompe este ar irrespirável e te faz sofrer. O calor depois sufoca a tarde enquanto esperas pela tristeza como única promessa fiável que sucede à claridade. Choras sobre a errância pelas impressões digitais dos teus dedos alisantes tão macios que quase matam a inquietude. Choras e há uma criança que corre na falésia de um abraço que derrota a mais ténue crispação. Se encostares os lábios aos meus flancos e ouvires o mar entrar na tua máquina de escrever deixa-o lavar-te a dor.


*

para o david

53 comentários:

Leonor disse...

uma escrita sublime, alice. parabéns. e a pintura da paula rego fecha com chave de ouro.

beijinhos da leonoreta

¦☆¦Jøhη¦☆¦ disse...

Olá minha amiga :) uma boa noite para ti.

Venho agradecer-te as tuas visitas no diário :) tenho pena que o meu tempo não tem sido o que eu desejava...

Como sempre, este teu post está muito bem escrito, confesso que admirado ficaria eu se porventura tal não acontecesse :)

Um beijinho, João

vania ♥ disse...

"No capítulo incerto do livro mais sábio perecem os suspiros da última noite em que as vozes dos olhos falaram."

Adoro esta frase... belo texto.

beijinhos..

Lord Poseidon disse...

Alice estava ler o que escreveste e vinha me sempre á mente Ofélia de Shakespeare Hamlet.
Não te sei explicar o por quê.
Li novamente e sempre a mesma imagem.
Talvez tenha a ver com o que Ofélia representa.
Inocência.
Não sei, deixo ao teu critério.

Beijos de Sal

Verena Sánchez Doering disse...

Todos los dias escribimos una parte del libro de la vida…
Todos los dias se llena de letras y sentimientos, por momentos envuelta en la magia del amor y otras del dolor
Cada capitulo un nombre…una historia
La luz que envuelve y se estaciona es la que hace dejar la magia de todo esto tan bello
hermoso como siempre
Gracias por tus saludos en Sucesos, si me envuelvo de letras siempre mi bella amiga y recuerdos que estan de mil formas
Mi abrazo grande
Hoy llueve mucho, y el viento a cortado la electricidad muchas veces, el frio esta como siempre en este invierno que se ha llevado el sol
Que mañana sea un bello dia, besitos y sonrisas para que hagan el dia de colores


besos y sueños

Anónimo disse...

Suspiros meus ao ler suas palavras, que sempre me parecem encantamentos, música de alem mar...

“Pelo lado errado do dia seguem em bandos as palavras rente às almas que num beijo migram de uma boca para outra boca.”

Onde meus sonhos são levados por tais apalavras... O que posso dizer é muito obrigado.

Tenhas um lindo dia dona moça linda de alem mar.

:************

amigona avó e a neta princesa disse...

Um dia hás-de contar-nos como te tornaste dona das palavras com que nos brindas em cada texto que escreves!
A música arrepia... beijo, querida...

Ana Luar disse...

Texto está simplesmente fabulosoooooooooooooooooooooooooooo a música de cortar a respiração...
A ti! A ti um muito obrigada por este momento único.

beijo com sabor a Luar

Anónimo disse...

Fizeste-me transportar ao nosso Parque da Cidade e lá, contemplando o passeio vagaroso dos cisnes, fui sorvendo as palavras quer tão deliciosamente debitaste.
Foi bom encontrar amigos por aqui, uns que encontro com frequência, outros já perdidos na imensidão do tempo...

No capítulo incerto do livro mais sábio perecem os suspiros da última noite em que as vozes dos olhos falaram.

Como gostei desta frase!

Um abraço, amiga.

Carla disse...

Este texto tá lindo!
Bjx

Misantrofiado disse...

Gostar ou não gostar, nem é a questão... Tu impossibilitas a indiferença, obrigando à absorção!

paulo disse...

E uma Pietá infanto-juvenil traz-me outras tardes como estas em parques como estes debaixo de sois e de árvores e com águas correntes. Sim, abraças, sim contemplas, sim, recordas na letra a sençação de ser. E levaste-me atráz um bocadinho, e um bocadinho melancólico fiquei.

Vanda disse...

...ler-te continua a ser prazer, vertigem, devoro-te as palavras, que maquina alguma poderá apagar de mim.

Hoje dedico-te a minha viagem a Marrokos, mais que não seja :))porque em viagem também se aprendem palavras novas :))

Mas sabes que é por muito mais, que te "a" dedico :))

beijo. Grande.

Van

Alberto Oliveira disse...

o teu colo
é o meu leito
a ele me colo
em ti me deito

o teu colo
é o meu castelo
o meu refúgio
minha muralha
sobre ele
meu coração trabalha
não há subterfúgio

no teu colo
respiro tenso-intenso
e quero imenso
o teu colo.

Paulo encostou os lábios ao poema assinando-o com um beijo. Depois, retirou a folha A-4 da máquina de escrever e abraçou-a. Nunca tinha feito amor com uma folha de papel com-um-poema-lá-dentro. Há sempre uma primeira vez para tudo, pensou.



beijos imensos, linda.

(sem calções na NET, seria outra estreia; mas improvável... )

Vanda disse...

:) Li, aqui to digo, tu tens dois espólios dificeis de igualar: o do coração e o das palavras.

-de que palavras o moldarás?

-com que palavras o deixarás ser moldado?

:)

Van

Anónimo disse...

Que coisa, Alice. Olha que eu me considero um razoável fruidor das belezas esculpidas pela palavra. Mas as imagens que brotam do agrupamento que consegue realizar com as palavras é algo de se admirar e aplaudir. Como costumo obedecer-me: admiro e aplaudo. 1 beijo

porfirio disse...

:
esquadrinhaste-me
os flancos

]adoro a maresia insótita
da paula rêgo
e ver crescer o salitre
da máquina-de-escrever
que levas tanto ao mar[

bjo
a ressoar
no búzio
!

Luna disse...

Cada vez que te leio, é com a mesma emoção da primeira vez

beijoca grande minha amiga

lena disse...

Alice, um texto bem construído, palavra por palavra, como se soubessem o seu lugar,

brotam suspiros, deixam emoções, erguem-se palavras rigorosamente esculpidas e deixam-me maravilhada

sim, gosto de te ler, é um sentir que adoro e não dispenso

um beijo meu menina "fazedora de palavras"

encantas quem te lê

lena

Anónimo disse...

Oi, menina.

"Se encostares os lábios aos meus flancos e ouvires o mar entrar na tua máquina de escrever deixa-o lavar-te a dor".
Preciso de um mar destes me invadindo, menina. Um mar menos cheio, para não se confundir com as lágrimas.
Estou indo...

Beijos, linda.

Jana

Anónimo disse...

O link que tenho no meu blog é uma honra. Deveria estar debroado a dourado...soberba a forma como usas as palavras para transmitir um corropio de sentimentos que nos invadem e nos deixam completamente perplexos...lê-se, relê-se e temos vontade de voltar a ler, como que para absorver toda a "beleza" que transmites...
Beijo enorme para ti.

isabel mendes ferreira disse...

pelo lado certo da escrita é que invalidas o lado errado da vida.
___________________________


soberana...como já disse mts vezes.
____________________________


beijo. Li. e deixo outro para a Van.

não vos esqueço NUNCA.

João Mãos de Tesoura disse...

Cambiamos saliva... nunca tinha visto um beijo na perspectiva fiduciária! :D
Boa verbe, gostei!
Bjs

Vasco Pontes disse...

Alice,
Cada texto teu é como se virasses a alma ao contrário. Chega a ser demasiado intenso.
Beijos...
PS: explica lá isso do e-mail outra vez, mas como se eu fosse muito burro :)
PS1: Ou então manda-me a mim um. está no profile
PS2: mais beijos

Anónimo disse...

Comento não. Calo, calo, calo!... só não dá de calar é o efeito que textos como os teus provocam em quem te lê, Alice: alumbramento!

Um abraço fraterno.

joao firmino disse...

Alice:

Vim também fazer uma visita e de facto este lugar tem muita qualidade estética e força humana. Parabéns. É um lugar a visitar mais vezes.
Beijinhos,
João

Maria Liberdade disse...

Se um dia disse eque não gostava... Aqui estou a eu a dar a mão à palmatória. belo texto, sim senhora! Fica bem.

Janelas da Alma disse...

Silent Visitor

Sometimes
at night
a lone Eskimo
would enter through my door
drink his tea in silence
and stay in for hours
without saying a word

and then
I realize
that what he really wants
is just another human being
to share with him
this silence.

Tuk Toyak Tuk

Eu venho aqui,
igualmente em silêncio,
beber as tuas palavras,
e sentir o calor humano
que transpiram delas,
que é o teu...

Escreves como uma deusa...
Beijinhos,

Nuno

Anónimo disse...

Realmente é deveras belo o seu blog. Adorei principalmente o titulo "Amar Palavras" pois é assim que deve ser, gostarmos de nós e medimos o que dizemos!
beijo

S. disse...

Lendo, descubro que tudo foi dito... Ou quase tudo... Mas ainda assim sinto que vale a pena dizer-te mais uma vez que a dança das tuas palavras encanta.

Parabéns.

Verena Sánchez Doering disse...

que linda amiga eres, muchas gracias por tus saludos en Sucesos:
De donde yo vengo se sueña…
y pago el alquiler de esta vida…
Mi identidad tiene número inventado por los hombres y me da un espacio que abre puertas…
es asi...la vida y logramos convivir todos
yo voy mejor, deseo que tu tambien estes bien, mañana es viernes...fin de semana y que sea muy bonito para ti.
besitos y muchos cariños



besos y sueños

Anónimo disse...

O tempo passa para a alma... O tempo normal voa, corre sempre contra, sempre prefiro o tempo da alma... Da saudade que corta sono...

Dona moça o que temos na vida são os instantes de inspiração, quando fecho os olhos antes de dormir, tenta pensar nos instantes bons do dia ou da minha vida para quem sabe assim atrair um sonho bom...
O que escreves e seu carinho são sempre lembrado.

No ponto onde o silencio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
tão nítido e preciso era o vazio.

{Sophia de Mello Breyner Andresen}

Lindo fim de semana pra tu amiga.
Saudades.

Beijos

:*****

kikas disse...

Voltei a ler-te, nao tentando interprear-te desta vez, acho que consegui imaginar-te a escrever palavras tão bonitas naquele jandim lindissimo, ou ate no bar do lago.
Gostei muito

Sea disse...

Fantástico

Manuel Veiga disse...

belo e "sofrido" como a "alma mater"...

Rui disse...

Um beijo, Alice.

O texto é lindo, nem vou procurar dizê-lo de outra maneira.

Nilson Barcelli disse...

Muito boa prosa.
Gostei de a ler, pousadamente, para poder apreender o seu conteúdo.

Beijinhos e bfs.

Light disse...

Querida Alice:
Não tenho a mais pequena duvida que a tua alma é tao grande que nao consegue albergar tanta ansia de escrever e de tornar possiveis palavras mascaradas de sentimentos,por isso te leio,te acompanho,sigo ao pormenor,suspiro cada palavra,alimento a minha alma com as tuas palavras tao bem colocadas,inspiro,pairo e torno a ler,sigo o fim e começo de novo,para chegar a conclusao que toda a tua escrita me prende outra e outra vez...
Beijo

Andre_Ferreira disse...

Que texto tão bonito!
Beijinhos

Anónimo disse...

Muito sentido, como tudo o que escreves. Muitos sentimentos. Num dia atípico, como hoje, fez-me bem..
Bjs

Silvia Chueire disse...

É belo o texto e a música que o acompanha.
Eu não tinha visto o seu comentário lá porque o blogger nada me avisou, desculpe-me.

Aproveito e aviso, dê uma olhada em : http://flaberggasted.blogspot.com

Um abraço grande,
Silvia

Luís Monteiro da Cunha disse...

Olá amiga

O poder das palavras nos teus olhos feiticeiros...

tens mail

Bom fim de semana

Bjinhos

Anónimo disse...

Belíssimo texto, de onde relevo estas excelentes palavras "seguem em bandos as palavras rente às almas que num beijo migram de uma boca para outra boca" - não só é belo como muito, muito bem escrito". Boa lembrança, a da Paula Rego. Estava mesmo agora a rever Graça Morais, também imensa e forte. Obrigado pela visita. Tudo de bom.

A. Pinto Correia disse...

Tens uma escrita fabulosa.
Beijos

isabel mendes ferreira disse...

boa noite Li.



não é comigo que aprende...mas é bom aprender consigo os variados ritmos de um discurso assim.


beijo.

Simone disse...

Alice amada...
Desculpe meu sumiço, mas estou correndo com os preparativos da minha formatura.
:)
Muito bons todos os teus textos que eu perdi...
E sinto muitissimo pelo sumiço. Não farei novamente.
Bjocas

alice disse...

bom dia, unicus

agradeço o teu comentário

visitei o teu blog, mas não tens comentários abertos nem endereço de mail, pelo que deixo aqui o meu sincero obrigada

um beijinho

alice

nunocavaco disse...

Muito bonito e toca pela dedicatória. É bom que se lembrem de nós, muito bom.
Bjo

Alberto Oliveira disse...

Linda:

A produção foi de fim-de-semana alongado?!

Espero que esteja tudo azul contigo.

beijos muitos.

EROS disse...

Bem… as voltas que dei para te encontrar nesta blogosfera… mas, valeu a pena… encontrei-te como encontro tudo o que gosto… num mero acaso e sabe bem… li-te… li-te como sempre e senti… Beijinhos!!!

Anónimo disse...

Olá, Alice-perdida-no-país-das-maravilhas...

Estou viva! Não se preocupe. Estou viva e sempre passo por aqui. Já tinha lido este texto seu, e agora li o texto feito para uma Alice (será você? Acho que sim).
Menina faceira, olhos brilhantes, leveza nos passos e poesia nos dedos. É assim que você deve ser!

Beijos, menina-Alice,

Jana

Anónimo disse...

Alice mora no meu coração... Junto a tudo de bom que guardo da vida, junto a toda contusão, Alice sempre é luz...

Linda semana pra tu linda Alice.... Linda semana

:****

Anónimo disse...

Alice, você sempre surpreende, sobrepondo maravilhas em cima de maravilhas, veja se não tenho razão no que digo:

“Sou talvez uma pena da utopia possível de um cisne que com o bico agarra o bico de outro cisne e desenha o teu coração imperfeito.” (Vi, nítida, a moldura, do coração, flutuanto no ar!)

“Chegaste de madrugada com a roupa rasgada e o cabelo desmaiado nos ombros do jardim.”

“Eu não disse nada quando te aproximaste com as tuas mãos muito grandes capazes de encestar o planeta inteiro no meu peito tão frágil.” (Que cesta essa sua hem? Diga-se de passagem, que é a mais perfeita cesta-poética que já li! É daquelas, enterradas no pulo do último segundo, antes do fim da partida.)

“Mudei as pernas de lugar e fiz uma cova no regaço até adormeceres sob o meu toque afinado pelo estertor da água. Li-te uma página do meu espírito com a serenidade das coisas que ambos sabíamos imortais.” (Certas coisas, são mesmo imortais!)

Tome ciência amiga Alice, que você, com seus escritos é mulher-inesquecível, que não passa despercebida, do meu olhar admirado e marejado de emoções-virgens. Sou teu fã!

Abraço Diovvani.

E.T.:
. já conhecia, seu belo post abaixo, acho que de sua outra morada.
. Por favor, não me agradeças mais, em lugar nenhum,
pelas palavras, que aqui escrevo. Sinceramente, eu é que lhe sou grato, pelas “coisas inusitadas” e poéticas que você expõe, diante de meu entendimento.