sabes, mãe. a janela que abriste no chão da sala verte luz na alcatifa. isto aflige-me muito porque pode entrar alguém. há pessoas que dão ordens aos pés e andam por aí. e fazem-no diariamente em grandes quantidades. elas não sabem que existes debaixo do teu vestido preto. imitam-se a criar hábitos em vez de filhos. fingem que a rotina é menos fatal do que viver. menos as viúvas sentadas a ler o destino. estas mulheres têm teias de aranha nos sapatos. e outras criaturas que guardam a desgraça nas fechaduras. penduram quadros na parede para contar histórias aos netinhos. diz-se que ouvem murmúrios quando as pedras choram. estão à escuta da amnésia e confundem isso com lágrimas. são velhas inúteis. monstros analfabetos sedentários que só servem para gastar dentaduras postiças. é por isso, mãe. tenho de te escrever. para não te matar.
alice
tenho brincadeiras monossilábicas como aos cinco anos. tocava nos teus seios, eu e tu nus na preguiça da tarde com o cheiro dos mamoeiros e o leite-seiva da mandioqueira a cair no terreiro. o hábito do teu corpo ligou para sempre o hálito na travessia das rugas, a casa envelhecida com falas antigas e assobios imberbes a chamar o sol como a buganvília trepadeira que descansava sobre o tecto. os teus mamilos, mãe, são ainda o meu sonho de águas novembrinas nos risos que ecoavam nas paredes e roçavam nas fotografias amarelecidas pelo desprezo. sei que vens ter comigo na angústia da palavra e comungas do meu fel quando, aziago, o dia vai na tempestade. os teus dedos molham nos meus lábios o tempo pacífico das palafitas.
josé félix
in teoria do esquecimento
2007.01.05
23 comentários:
o mais belo sabemos depois é saber ser "Filho/a".
assim.
belo o murmúrio.
canto de espera.
ao canto do sol que amadurece
bom dia querida queridíssima Li.
sabedoria, y.
Alice, vim por necessidade de te ler
encontro um dos mais belos textos que li este ano
sinto-o, num murmúrio
alongo as paredes do quarto, desenho o tempo, visto-lhe o destino. surpreendo-me, são os meus olhos cansados e desafiam a intensidade ardente da tua sombra …
abraço-te ternamente doce Alice e deixo-te um beijo meu
lena
Quando li o que escreveste e principalmente como acabaste
“é por isso mãe. tenho de te escrever. para não te matar”
fiquei calmo, quando tudo apontava para um arrepio...
Há um dia por semana em que almoço com os meus pais.
Sempre que olho a minha mãe e olho nos seus olhos, vejo silêncio.
Não um silêncio de amnésia, mas um silêncio de um longo percurso
de auto anulação.
Primeiro fê-lo pelo marido, depois pelos filhos e agora pela solidão.
Uma solidão que o seu sorriso me demonstra o quanto lhe foi imposta.
Ela própria já se esqueceu que existe por debaixo das suas roupas.
Por isso continuo em todos esses almoços semanais a puxar pelo seu sorriso.
Digo-lhe que sorria e que inúteis são os trapos.
Fiquei calmo e não me arrepiei...porquê?
Porque quero-a a sorrir e a caminhar ao sol, não aceito que se “mate” no
fingimento de que a vida é rotina.
“É por isso mãe. tenho que te falar e fazer sorrir. para que não te matar”
Não deixar que te esqueças de ti...
Que deixes de olhar para as fotografias na cómoda, pois estou aqui e contigo
Bj’s Mãe...
Volto só para te ler. Só isso.
Gostei das palavras.
bj
Gui
Esta música fica aqui muito bem...
[ Às vezes também tenho de escrever para a minha mãe. E digo isto como quem podia dizer muito mais... mas só sei dar ordens aos pés. Porque quase sempre me tento a esquecer que ela existe debaixo de um vestido... ]
Beijinhos*
BRAVO ALICE
Disse pessoalmente que eras uma grande poetisa.
Contudo parece-me que é a primeira vez que tenho tempo para comentar este "potencial" poético excelente, este erotismo "elas não sabem que existes debaixo do teu /vestido preto"
Tens ... anos?
E parece uma poesia tão madura como um século - "diz-se que
ouvem murmúrios " Acredito em ti. Escreve, escreve muito.
beijo
José Gil
Morre-te, morres, morrem, ao sabor dos espaços entre os passos dados de olhos fechados, guiado apenas pelo som das aranhas tecedeiras a cuscar a vida alheia dos mortos...
beijos
É bom que escrevas amiga... assim, vives e também faz viver. MontanhosoAbraçoDasMinas.
E.T.: eu, também, sempre lembro-me de você com carinho.
Sabes que este poema me tocou especialmente. É fantástico e é fruto de uma grande amiga e poetisa. Que a Poesia e as Palavras vivas sejam sempre junto a ti.
Um beijinho
Jorge
Canhotos caminhos me trouxeram: uma rajada súbita de ar fresco; vou querer falta de ar. Para voltar!...
alice
o texto construído através de preceitos oníricos agradou-me.
a pontuação curta, obrigando o leitor a pausas apropriadas, dá-lhe uma acentuação solene / doce / raiva/ carinho ao mesmo tempo.
segue resposta aproriada.
José Félix
Estás, de facto, em plena estado degraça. Tudo de bom.
Depois da azáfama dos presentes de Natal, da caminhada desenfreada e decrescente para o Ano Novo, chega, sereno e mansinho o dia de Reis. Mas desde o dia 25 de Dezembro até ao dia 6 de Janeiro, há uma tradição que é genuinamente portuguesa, o cantar das Janeiras…
É maravilhoso ver os inúmeros grupos de pessoas que saem à rua, com frio, gelo e em alguns sítios até mesmo neve, para cumprir a tradição. Para ir de casa em casa, de porta em porta, de família em família, apenas para cantar e louvar os reis que visitaram o Deus-Menino.
É importante manter estas tradições que são tipicamente portuguesas, onde se cultiva o convívio e a alegria.
Abraços sempre.
... sei sim, filha, fiel biógrafa da minha vida e herdeira dos meus pertences. o meu vestido preto, as teias de aranha nos sapatos e a dentadura postiça serão tuas (por direito próprio) e quem me dera poder chegar tão longe e apreciar o que vais fazer com eles quando chegares à minha idade. mas posso imaginar porque as letras que hoje me dedicas com desvelado amor, também em recuados tempos da história da nossa família, igualmente as dediquei (mais vírgula menos vírgula) à tua avó materna. são incontornáveis os nossos dotes genéticos...
a tua mãe, que muito te ama,
maria augusta
beijos muitos e os sorrisos do costume.
Dois excelentes tectos falsos, o teu e o do Félix.
Já não te visitava há imenso tempo, mas vejo que continuas a escrever como poucos.
Beijos.
esta música q escolheste é a mesma com que muitas vezes começo o meu dia... sabes que sou sombra de preferir ficar calado, mas tinha de comentar isto. :)
Yann Tiersen vem cá, dia 7 na Aula Magna. talvez lá possamos respirar um pouco do mesmo oxigénio?
as tuas palavras, perdoa-me... mas prefiro não comentar. não tenho nada que possa acrescentar à sua magnitude.
um beijinho.
não esquecerei o que li. não esperarei pela amnésia.
permite-me dizer: tenho tanto orgulho em ti!
São daqueles textos que me tocam pela maneira como se "estendem", natural e brandamente.
A casa com tecto falso fala poeticamente de criaturas mágicas, como nos contos infantis...
A complementação dos dois textos é excelente e abana um pouco a nossa usual maneira de os ler.
Porque gostei, aplaudo!...
O sentir feminino encarnado na primeira presença de mulher... ponto de desejo, amor e prazer mas também de hostilidade!!!
Bjs
continuas preciosa na escrita
bjs
c.
Não é fácil matar a mãe, deixar de matá-la é muito mais difícil ainda. Ainda bem que existem as palavras e quem as use tão bem.
Profundo... Sentido de todas as coisas, na criadora de tudo.
Muito bom, diria instigante (=
Adorei demais.
Otima semana pra tu
:*
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