2006-11-23

um ano depois



querido avô
não irei repetir as tuas últimas palavras
tentarei proferir as que não me disseste
foi depois das seis horas da tarde
pousei o auscultador respeitosamente
imprimi um papel de luto antes de sair
deixei a minha mãe desenhar o primeiro gesto
e recebi no ombro o vómito do teu sorriso
fui eu quem te vestiu e remendou um terço nas mãos

hoje é dia do pai, avô
hoje é um dia duro, pai
tu és o meu pai em todas as minhas horas
e eu sou filha do teu sexo inerte e puro

tu penduraste o meu medo no banco do baloiço
tu levaste-me à escola no primeiro dia da inocência
tu mudaste o meu penso higiénico no teu sangue
tu mostraste-me a beleza das flores e das pedras
tu levantaste-me de todas as vezes que me deixaste cair
tu ergueste-me mulher por dentro dos teus olhos
tu compraste-me cigarros com a tua reforma inválida
tu deste-me a tua cama para eu amar um homem
tu enviaste-me um anjo nas asas do adeus

amo-te, avô
morreste no dia 23 de novembro de 2005
e ainda não verti uma lágrima
tu sabes que eu quero chorar
tu sabes tudo de mim, avô

sabes que intuí o amor do anjo
e que me vi no espelho que o anjo me trouxe
como antes me vias e eu não podia

sabes que eu não sabia nada de mim
sabes que morri em todas as palavras do anjo
e que nasci em cada um dos seus silêncios
sabes que sofri as humilhações do anjo
e que a tortura do anjo me edifica
sabes que voei nas promessas do anjo
e que a ternura é o melhor orgasmo
sabes que o anjo me fez feliz, avô
sabes que amo o anjo

onde está o meu anjo, pai?



*

(fotografia de jaime silva)

9 comentários:

Anónimo disse...

Lindo poema.

MOLOI LORASAI disse...

Aliece.

Anónimo disse...

Oláaaaaaa querida Amigaaaaa...

amigona avó e a neta princesa disse...

Linda homenagem querida... muito bonito e lá de dentro do coração...(tenho sentido saudades tuas)... beijo...

lena disse...

abraço-te com toda a ternura, abraço-te com carinho,
deixarei a minha mão sempre presa à tua

saudades muitas de ti, aa tuas palavras, ajudam-me que os dias tenham um sabor diferente doce menina

deixei de chorar desde um dia que chamaram 21 de novembro, risquei-o do meu calendário...

o poema tem tanto amor dentro dele Alice, cresce tanto dentro da ternura, do carinho e do saber ser

um doce beijo meu, amiguinha

lena

Misantrofiado disse...

Shhttt (...).

inBluesY disse...

não é o chorar que devolva ou espelha a alma...
um beijinho apertado amiga

Anónimo disse...

Novembro

Vou morrer num dia de Novembro.
Quando já todas as folhas tiverem caído.
Não será o próximo, ou um próximo sequer,
Mas será, seguramente, um dia de Novembro,
Quando todas as folhas tiverem já caído.
Esse dia de Novembro nascerá límpido,
Cromatizado pelas chuvas que, entretanto, durante a noite,
Insistirem em cair.

Sempre existiram chuvas nas mortes que mataram um pouco da minha vida.
Existirão chuvas no dia de Novembro em que eu morrer.

O jardim, aqui ao lado, estará repleto do seu movimento matinal.
O lago, onde tantas vezes fui dar pão aos patos, onde tantas vezes o meu filho foi dizer bom dia aos patos,
terá crianças em seu redor, crianças que dão pão e que dizem bom dia aos patos, levados pelas mãos eternas das mães e dos pais, que seguram as mãos de sempre dos seus filhos.

Será Novembro. Estará frio, e o orvalho será visível. O sol nascerá quase branco, na luminosidade pura dos dias gelados.

Será Novembro. Todas as folhas terão já caído.

Nesse dia, existirão amores mágicos. Todos os dias existem amores mágicos. Nesse dia existirão lágrimas, daquelas que o amor usa para se perpetuar...

Nesse dia existirão horas, e existirá o inevitável passar do tempo.

Existirão mãos que se prenderão para sempre. Existirão olhares que, por entre os dias, se perderão para sempre.
Será um dia de Novembro. Como os dias de Novembro são. Só que morrerei nesse dia.

A minha ausência talvez se note. No jardim. No jardim que eu amo como amo poucas coisas neste mundo.
Já lá não estarei sentado, a escrever. Terão passado anos desde os dias em que lá me sentava e escrevia, sempre, para ti.
Terão passado anos dos dias e das noites em que lá me sentarei, procurando a presença de todos os que amo e que, ao longo dos dias e dos anos, me forem falecendo e faltando.
Terão passado anos dos dias e das noites em que lá me sentarei, como já hoje o faço, a pensar no que se ganha e no que se perde na vida. E concluir que, no fim, só o Amor é importante. E até o amor se pode perder, como todas as coisas que existem.
Terão passados anos dos dias e das noites em que lá me sentarei levado pelo teu amor.

Noites e dias, em que lá me sentarei lembrando os dias em que te conheci. Os dias em que éramos promessas de sóis e de estrelas, impossíveis explosões de juventude.
E as crianças no meio de tudo isto. Sempre as crianças no meio dos dias. As crianças que crescem. O tempo que passa. Os dias que se acumulam e que nunca se anulam...

Um dia seremos velhos. E eu ver-te-ei, como numa óptica multifocal, através de todas as idades. E em todas terás sido Bela. E em todas serás Única. E em cada uma compreenderei que, na minha vida, só poderias ter sido tu. Sempre.
E sentir-me-ei abençoado.

Um dia já não regressarei do jardim para te lembrar que te amo. Um dia já lá não irei para ver o mundo, o sol, as luzes, os animais, as crianças, ver a tua presença dentro de mim, na minha circulação, no bater do músculo que trago no peito e que, sei-o, desisitirá num dia de Novembro, quando todas as folhas tiverem caído.

Então serei Luz. Ausência. Presença.
Serei Luz.
Intensa.

E começarei, como sempre, a procurar-te.

E um dia, muito depois do Novembro em que morri,
Com todas as folhas caídas,
Encontrar-te-ei outra vez. E ver-me-às.
E, não o sabendo, saberemos.

Existirão outras palavras.
Existirão outras fisionomias.
Existirão outras datas.

Mas algo nos fará prendermo-nos mais força quando for Fevereiro ou Novembro.

E não saberemos porquê.

Mas saberemos.

Como sempre o soubemos.

Anónimo disse...

“As lágrimas são um mapa pleno de significação e de leituras. Temos muitas maneiras de chorar e, o modo como o fazemos, revela não só a temperatura dos sentimentos, mas a natureza da própria sensibilidade. Ao chorar, mesmo na solidão mais estrita, dirigimo-nos a alguém: esforçamo-nos para que ninguém veja que choramos, mas choramos sempre para um outro ver. As lágrimas emprestam um realismo único, irresistível à dramática expressão de nós próprios. São um traço tão pessoal como o olhar ou o mover-se ou o amar[1]”, José Tolentino Mendonça.