2006-08-18

não te deixarei morrer, amor



quem és tu que avanças o tempo no meu calendário?
que o escrutinas como no talho e divides em doses duplas?
pago-te a carne cirurgicamente cortada
e levo-te pendurado em mim até ao congelamento cínico
escolho a gaveta que promete melhor temperatura de conservação
e quase desejo esquecer-te
que esta seja uma câmara fúnebre irretornável
que o gelo devore a etiqueta da tua identidade
como um sopro de cera nas velas do teu quarto
que nunca a fome me faça recuperar-te no microondas
que a sede encoste ao lado da razão partida em farpas
que a minha boca possa ser líquida como antes
que o teu barco desencalhe e não derrame petróleo
na escuridão
quase desejo violar-te
separar-te em grãos no fundo de uma chávena
fumar-te consciente dos malefícios do tabaco
arrancar-te as gengivas e acompanhar com natas
passar o resto no triturador um dois três
saber em um que móis
em dois que dóis
em três que matas
fulminar-te na cama
e profanar o descanso da criança em chamas
quase desejo penetrar-te
lavar-te a trinta graus com analgésicos
secar-te no ponteiro das roupas delicadas
e enxugar-te depois com estaladas
eis a minha vingança
voltarei a ti num dia em que estejas acordado
vou esfregar a louça que entope a banca da tua consciência
e meter-me como açúcar nos teus dentes
deixa-me entrar em ti
quase desejo perdoar-te
tirar do frigorífico a fatia de sono dos teus genes
e adormecer


*

(fotografia de helder rodrigues)

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