2006-06-17

prefácio

(fotografia de eric kellerman)
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caminhava sem pressa por aquela hora lhe ser mais fácil não ter para onde ir. a seu lado o amor, denso, curvado, manco. à sua frente a morte, alta, esbelta, provocante. usava uma noite larga, comprida e branca. no corpo, os cigarros e outros embaraços para disfarçar más línguas. quando nasceu de cesariana, houve negligência no trato do feto por aborto de incoerência. mais tarde, quando suspeitaram da configuração dos olhos e lhe pesquisaram os genes, já as traças tinham roído a cura no armário. procuraram na fé e nas bruxas, mas não há ciência para a escuridão. e no dia do baptizado foi com água pouco benta que lhe chamaram loucura.

*

isto a propósito do seguinte: há cerca de um mês, recebi uma carta nos seguintes termos:

"Ex.ma Sr.a Dr.a Alice (...), Por ocasião do sexto aniversário sobre a conclusão da Licenciatura (...), vimos pelo presente convidar V. Ex.a para um jantar de confraternização que se realiza no próximo dia ... (...)"

convite este que recusei dado já ter um compromisso na mesma data. não satisfeitos com a minha resposta, insistiram, garantinho que me esperariam. aceitei e cheguei ao restaurante à meia noite. trinta pessoas sentadas diante de copos vazios e guardanapos amarfanhados. sessenta olhos em cima de mim. e as perguntas logo disparadas: já casaste? tens filhos? como vai o trabalho? o que tens feito? porquê que só chegaste a esta hora?... e eu que detesto ser o centro das atenções fui respondendo, moro sózinha (...), trabalho imenso (...), fui a um evento literário... (mas tu gostas de ler?) tenho o meu blog... (tu escreves?????)

BLOG?... POESIA?... talvez seja melhor pedir a conta... está a fazer-se tarde... (...)

(impressão minha, ou passei de doutora a louca?)

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fumei sobre o assunto

19 comentários:

poca disse...

é, acho que as pessoas que nos conhecem normalmente preferem ver-nos tal nos vêem e não tal como nós somos...
não importa o que eles pensam, não esses.

inBluesY disse...

Alice
Alice
a 1ª vez que comentaste no meu Blog irritaste-me, já falamos s/isso, mas eu sou mesmo assim, acabo por gostar das pessoas que fogem ao branco e amarelo normal dos dias, e porque ? pq regra geral tem sempre algo para dizer, acrescentar, modificar, suma não resumem o acto de viver ao copy paste hoje tão vulgar, desde esse t/coment nunca mais te perdi o rasto pela diferença que colocas nas tuas palavras.

em tempos um grande amigo meu falava da utilidade de certos pontos finais, é hoje entendo bem esse acto.

porque falei disto tudo agora ? para mim faz todo o sentido neste post, excelente.

1 beijo grande

isabel mendes ferreira disse...

e do fumo que saía das gargantas das bruxas que eram malditas tu emergias...


assim. como quem se estende ao sol.

e ninguém cala.



beijo.

clautixa disse...

eu axo q a maior parte das pessoas vive para saber da vida dos outros, e parece q se tem um limite pa casar, e q toda a gente tem q cumprir isso. irrita me tanto. mas passando a frente, priemiro insistem demasiado para q aparecemos, qd aparecemos metem-nos defeitos, ninguem é perfeito.
bom fim de semana.
beijinho***

Silêncios disse...

As pessoas assustam-se quando descobrem que somos algo diferente do que pensavam.Se passaste a louca' Espero bm que sim, porque de gente "sã" e falsa estou eu farta.Venham os loucos, que me fazem mais feliz...

Anónimo disse...

"Bem aventurados os loucos" alguém disse antes de mim.

:)

Gostei.

Bj

lena disse...

e deixa que brinque contigo Alice, como sabes bem sair das situações "Ex.ma Sr.a Dr.a Alice (...), parabéns

mas o que li eu?

uma maravilha que como já muitas vezes disse adoro.
sim, adoro a forma como escreves, este textos poéticos que me encantam e me arrepiam

trepidam as palavras na minha alma, como uma peregrina sem tempo. nada receio e espalhasse em mim a tonalidade perfeita das imagem que me embriagam. à minha volta caiem pesadamente os sonhos da minha loucura...


um beijo para ti, menina doce e linda

lena

amigona avó e a neta princesa disse...

Querida amiga, só tenho pena que fumes! O resto é um espanto!

Beijo...

MCorreia disse...

É mais fácil para os outros verem-nos como eles pensam que somos.
Continua com a tua irreverência, que se mesmo para alguns for loucura deixa lá...cultiva a tua diferença!

Beijinhos,

Mónica

Anónimo disse...

Querida Alice, você sempre deslocando as palavras, pluralizando os sentidos, arrastando vida nas unhas, como se, neste ato desesperado, fosse a última chance de se prender em terreno mais ou menos firme, antes de mergulhar o rosto no mar de dedos inquisidores, que apontam, apontam, apontam e dizem aquilo que você é. Loucura ou não, o limite entre a sanidade e a ausência desta é fino, quase transparente. O amor e a loucura andam um ao lado do outro e passo a passo seguem.

Beijos,
abraço forte,
Jana

Lord Poseidon disse...

Como eu odeio esses jantares.

Onde a nossa vida pessoal é passada a pente fino.

Para mim eles são uma espécie de inquisição contemporânea.

Bela escolha Metálica “Nothing Else Matters”

Beijos de Sal

Anónimo disse...

Olá amiga

Por isso é que não compareço a certos convites, são inevitáveis as perguntas, as comparações e... o espanto
(dos anormais) que nos fazem sentir (a)normais

Obrigada pelas tuas visitas e carinhos

beijinhos
deixo-te este meu devaneio...

Não me deixes...
coragem
não me toques no ponto
o ponto final
da viagem
que recordo
na passagem memorial
dos contornos
do teu corpo
das curvas celestiais
Deixa-me...
Conduzir-te na exclamação
quando quiseres e tiveres
terminado na interrogação
do que mais tenho para dar
Não masturbes a mente
na palavra falaciosa
Bebe de meu peito a vírgula
que satura a boca sequiosa
.../...


© Luís Monteiro da Cunha
2005-10-17

Anónimo disse...

Algumas pessoas param de crescer, não no tamanho, corpo, mas sim na mente.
Param no tempo como barcos encalhados a deriva na própria ignorância...

Quando olham uma outra que voa, livre, leve, não sabem o motivo, vão logo pensar o que será que tem de deferente, todos nós aqui parados, ruindo e ela livre pelo ar...

Es um pássaro que voou mais alto, descobriu os picos das montanhas, desvendou as negras noites e voa livre com sua vontade.
Assim sempre terá uns e outros para imaginar como podes ser assim tão bela...

"quanto mais alto voamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar"
{Friedrich Nietzsche}

Es pluma na brisa do tempo dona moça.

Ótimo domingo pra tu anjo de alem mar.

Beijos

:*********

Alberto Oliveira disse...

... que lhe chamaram loucura, doença, mania e tantos outros vocábulos que ela tomou como bons que a água com que foi baptizada era límpida e sagrada, que a escuridão tinha sido varrida da face da terra, as bruxas, a fé e as traças eram agora símbolos de marcas desportivas ...
(...)
... provocante, esbelta e alta, matou a morte de vez; perfeito, erecto e apaziguador, o amor estaria sempre a seu lado. Iria onde quisesse, àquela ou a outra qualquer hora, a seu belo prazer caminhando. Nada lhe seria vedado.



beijos muitos.

Micas disse...

É horrivel não é? também detesto essas situações, de uma coisa não tenho dúvidas! antes louca que "doutora"... ;))

Beijinho

Vanda disse...

:) Bom dia!!! :)

O ser diferente.
O escrever diferente.
O sentir diferente.

Fumemos então sobre a diferença...

Van

Ps-Obrigada por lá teres ido abrir as janelas :)
Por teres afagado o "gato" :)
Por me teres feito sentir especial, nesse teu grande coração.
Obrigada por seres assim.

Um beijo enooooooooorme

Van

Anónimo disse...

Querida Alice,

estava somente lendo e relendo seus poemas, mas não resisti a vontade de fazer um comentário hoje.

Li estes dois últimos poemas e, confesso, que é impossível não falar da cortante beleza que você consegue criar com sua palavra esculturalmente lapidada.

No poema “unforgiving” é maravilhosa a maneira com que a poesia esculpe um nada para falar, falando de todas as maneiras que um corpo sabe falar e calar a si mesmo e ao outro.

No poema “prefácio”, então, é dolorosa a beleza com que você descreve aquela caminhada ao lado do amor e antes da morte.

Sua literatura é grande demais, menina, parece que o blog é pequeno pra ela !!

Ah, sobre a loucura e a eterna discussão entre ela e a sanidade... também desejo aqui fazer uma pequena observação, porque não poderia comentar assunto tão vasto neste espaço, porém, lhe digo uma coisa: há muito, não creio na sanidade, e isto desde que consegui me libertar da castração que é ser “sã”, para viver da maneira que desejo ser feliz, sem pensar, nem me importar com o que pensam ou pretendem de mim. E, olha, que eu também sou doutora (rs).

Um grande beijo e boa semana com muita e muita inspiração para você, pois é bom demais ver este mundo mais bonito com a sua poesia.

Marilena

Anónimo disse...

felicidades por ser estar y seguir
respetusamente
Luis Gavotto

Janelas da Alma disse...

Um beijo de saudades e respeito para ti!...Eu também detesto os inquéritos de casa de banho!...São um pouco como a música de elevador...dão-me vontade de correr para casa e comer duas latas de salsichas Nobre, acompanhadas de restos de leite condensado, porque faltou o petróleo outra vez, e nem há já luz para ver as sobras no prato!...Eu sei que TU compreendes!...
Eu gosto mesmo muito de ti, sabes?...Resta-me saber se também tu existes, realmente!...
Beijinhos para ti,

Nuno