2006-06-04

a despedida

(desenho de picasso, guerra e paz)

*
*

planeio matar-me, meu amor.
a velha que mora no andar de cima tem o vento enjaulado no frigorífico e a conta da luz lá pousada. o calor contou os degraus e subverteu a física. subiu a descer.
o rapaz da drogaria veio hoje buscar os bicos do gás e nem sopa tenho para mastigar os pobres.
há a varanda e a ria e a geografia que o arquitecto soube enquadrar. mas sabes como tenho medo das alturas.
estive a ver o extracto da saudade e as folhas em branco que não vou rasgar. cancelei o cartão do banco e varri o dinheiro para debaixo da simpatia.
não tenho ninguém a quem avisar. vou marcar a data do meu funeral. no domingo, à hora do chã.
escolhi um caixão já usado e na vala comum é mais barato.
levo as calças da tua mãe e o tronco nu. se me constipar, volto para coser as tuas meias e deixo-te as minhas mãos na caixa do correio.
a chave? vou entragá-la à mulher do supermercado. coitada. cheia de varizes e molas no soutien.
vou usar ácido. fumo um cigarro e conto até dez. lembras-te? finjo que são os teus lábios e bebo devagar a tua boca.
quando morrer, quero ter um telhado e um sorriso abafado na casa principal.
ouve. não leves tulipas nem lágrimas. as flores crescem dentro de ti primavera encantada. deixa os vestidos secarem pretos e as nódoas treparem floresta.
se vieres, traz-me uma quadra que diga gosto de ti.

*

acreditas que a angústia entrou pela janela do meu quarto?

30 comentários:

escorpiaotinhoso disse...

Não sou capaz de acreditar que a angustia entrou pela janela do teu quarto,

ALICE,

Pois com a angustia dentro do teu quarto não te vejo a AMAR PALAVRAS,
quando muito, mastigá-las?

Com desejos de que passes a hora do chá sem tragédias, porque todos gostamos de ti... Beijinhos

ET

Anónimo disse...

a angústia sempre a espreitar o artista, a entrar por janelas, portas ou frestas, para se construir em palavras e se mostrar bela, talvez? obrigada pela sua poesia. bj grande.

inBluesY disse...

acredito sim, tantas vezes ela entra pelos lugares mais estranhos.

mas tenho de ler este texto muitas muitas mais vezes.
1 BJ

MCorreia disse...

Venham todas as angústias que te fazem criar assim. Adorei o texto.

Mónica

Lagoa_Azul disse...

Poder-te ia mandar palavras sem nexo,
Declamar-te numeros infinitos aqui,
Contar na penumbra becos convexos
Mesmo que nem acredites, gosto de ti...


Magnifico querida amiga Alice,

Boa semana, e beijos sempre com carinho

lena disse...

estive a ler-te, a tua escrita é excelente, e adorei uma vez mais

teces palavras que me encantam,
viajas no palco da vida
e é tão fácil gostar de ti

o meu beijo Alice e um abraço com carinho

lena

Anónimo disse...

Aqui estou anjo de além mar.
Música, aqui só carrega o player no final do blog com um tuts tuts tuts mais nada :(

Quanto ao post...

Triste, com tom de vingança, algo amargo, guardado para o ultimo instante, mesmo assim com toque de alegria da poesia..

“As flores crescem dentro de ti primavera encantada. “

Perfeito..

Linda noite e ótima semana para tu moça.

:****

Eli disse...

Mania de deixar as janelas abertas, mesmo quando se fecham as portas... ou... estarei a ver vidros partidos?

:)

GNM disse...

Por vezes ela tenta também entrar
pelo janela do meu quarto, maa
eu fingo não a ver e fecho
as cortinas...

Adoro surpresas...

Sorrisos para ti, Alice!

Alberto Oliveira disse...

Meu amor:

Não te mates ainda. Detesto que aproveites as minhas ausências para tomares decisões irreversíveis. Sabes que se eu estivesse junto a ti, teríamos discutido a situação e, quem sabe, chegaríamos à brilhante conclusão que nos devíamos matar os dois.
Depois há a questão dos pormenores e essa de "usares um caixão já usado porque é mais barato", não lembra o diabo! Esqueceste-te completamente que o meu tio Serafim é dono de uma das funerárias mais importantes da margem sul? e que já nos prometeu fazer uns descontos irrecusáveis se batêssemos a bota antes dele?!
Eu sei que este trabalho aqui na Nova Zelândia, de tão longe, está a ferir de morte o nosso amor. Mas eu vou já para aí! Não te mates meu amor!

O teu Amândio.


Fechou a carta, meteu-a no bolso, pegou na bicicleta e iniciou a viagem de regresso a Portugal.



beijos.

porfirio disse...

:
boa noite alice

fecha a janela
stop
abre o peito
stop
cerra as pálpebras
go
inside the dream
.

bjo
e
dorme bem

kikas disse...

Penso que entendo a tua angustia, sei porque ela te bate de vez em quando.
Falar de morte ou anunciar a morte nunca vai ser solução, quem sabe se um dia não encontrarás a tal borracha que apaga o que nos queima.
Beijo-te

Edilson Pantoja disse...

Clap! Clap! Clap!...
Alice, anjo da vida!, que coisa bem feita!, bem dita, bendita! Teu conterrâneo disse bem sobre o fingir do poeta... Teu poema tristonho tem isso. Diz: Há beleza na vida, viver vale a pena, apesar dos percalços. É assim que ela, a vida, emana de tua boca, de tuas mãos, para o mundo e me chega e renova nesta manhã de seguda. Entre tanta coisa que boa que a vida oferta, tua poesia.
Abraço, querida! Tem também ótima semana! E cria, cria, cria...
Clap! Clap! Clap!...

Licínia Quitério disse...

Querida Alice,
Eu gostava de saber fazer a quadra de que tu precisas. Mas não sei. Só te posso dizer: Fecha a janela. Pinta-a por dentro. De azul.
Beijos.
Licínia

Vanda disse...

...quando eu morrer e se a morte existir, plantarei flores que te digam todas as manhãs gosto de ti.


Van

Anónimo disse...

virtualmente, vou-me. gosto de ti. gosto de ti. gosto de ti. gosto de ti. e lê-la e relê-la é o jeito mais visível de demonstrar o que repito: gosto de ti.

BlueTraveler disse...

Tanta dor e angústia...
Tanta tristeza e solidão...
Tantos sentimentos que te sofocam e oprimem...

Mas a vida é mesmo assim... e se algo se pode dizer, é que isso provoca sempre uma qualidade de escrita superior em nós...

Sentimo-nos mortos, mas de dentro de nós sai um sopro de vida.

Excelente texto.
Beijos

Anónimo disse...

Alice, quando não se há muito que alimente nem o corpo, nem aquilo que acreditamos ser alma, nos resta ou uma vivência obtusa ou uma despedida, um apagar de luzes e uma entrada aos bastidores. Quando não há mais nada, quando há apenas a solidão e a conversa-eco com as paredes, opta-se pelas reticências ou pelo ponto final... Texto que faz doer... Texto que traz a solidão nua...Obscena para os olhos.

Beijos, querida,

Jana

P.S: Tem texto novo meu no Brutti. "Valsa vermelha". Passe lá quando puder.
http://naselva.com/brutti

Alberto Oliveira disse...

gostar de ti feiticeira
é a coisa mais natural
que gostar desta maneira
faz tanto bem não faz mal.

não faz mal nem dá azia
mas o coração dispára
já lá tens a fotografia
hoje fiz compras na zara*

Para rimar estou por aqui, como se nota. A "fotografia" é o comment no teu post anterior...

beijos. manda embora as saudades, tá?

Luna disse...

Abre a janela da vida, deixa o sol vir beijar os teus cabelos, sente a caricia do vento nas tuas faces, cheira o brilho das estrelas , a vida existe para lá da morte, tudo roda com a sinfonia das esferas.
beijinhos

Se quiseres ter o trabalho de me dar o miminho que falas-te no meu cantinho
11mjpereira@sapo.p.t.

Lord of Erewhon disse...

Belo este texto, raro mesmo.
Dark kiss.

Alisson da Hora disse...

ora ora...quando sai finalmente o teu livro, ó doce lusitana???
Belíssimo...

Anónimo disse...

Quando os dias são longos,

as noites intermináveis

e de nada mais se tem vontade

ainda resta algo importante,

o sentimento da amizade.



Perto ou longe é tão bom saber

que existe alguém que torce por você

e sempre deseja lhe ver.



Se chove ou faz sol,

frio ou calor

a tempestade do amor

é que vai auxiliar

seu coração palpitar.



Carinho nunca é demais,

está provado o bem que ele faz,

e o quanto pode ajudar

a dar força e coragem

a quem está em desvantagem.



Resumindo eu só posso dizer

que estou aqui pra você

e onde se lê

"carinho nunca é demais"

leia-se;

"pra você eu quero sempre ser mais."

Anónimo disse...

Alice ,agradeço a passagem e as palavras. Visitei e descubro aqui escrita cheia de sentimentos; muito forte o que dizes (quase poesia!). Muitos parabens. Vou continuar a passar. Bjs

Vanda disse...

Hoje quero-te alva

despojada de ti

quase perfume.

hoje quero-te brisa.

sem pés que te prendam ao chão.

Soberba como uma nuvem.

Despreendida da terra.

ojieb, pelo contrario e do avesso ;)

Van

Sofia disse...

Mais uma vez Alice.... fico até sem palavras. É genial, fantastico este texto.

um bj

Dani disse...

Lindo, querida Alice. Simplesmente, lindo.

Beijinhos

mitro disse...

Fabuloso!
Este texto fez-me lembrar Dali!

Leonor disse...

bemmmmmmm!
alice!
o texto está fantástico. é a metafora permanente.

beijinhos da leonoreta

Su disse...

gostei de ler.te
jocas maradas