2006-05-15

terceira parte de "vidas vazias"


quando hugo adormeceu, sara foi buscar a caixa velha dos retratos
respirava sempre mais quando destapava o baú das memórias
como se os pulmões pudessem recuperar o cheiro dos antepassados
perdoou-se a fraqueza na escolha dos envelopes
era-lhe sempre difícil invadir a sua privacidade
estava dentro da roulotte que a avó lhe deixara
era uma casa móvel, logo, podia demolir-se e remolir-se quando desejava
havia uma estrela pendurada à janela e panos ensanguentados a coser-lhe as pernas
(mas a dor do parto coagulava e o brilho celeste jamais cessava)
dali, ouvia a poesia a chover
e a água caía dentro da caixa das recordações
e humedecia os papéis já de si muito gastos
sara tinha ciúmes da erosão
do efeito quase perverso do desgaste nas fotografias
das nódoas irrecuperáveis a eternizar momentos efémeros
da evaporação da cor e dos traços perfeitos
e hugo dormia no início do verbo que haveria de ser
a mãe olhava-o com o amor possível que advém dos factos biológicos
segurava os papéis com a força com que poderia reter aquele amor para sempre
prendia-os com a mesma vontade de estancar as lágrimas que sabia irrepetíveis
mas nem as palavras resistem ao princípio da criação
é uma questão de essência, de natureza irrecusável
e basta um gesto para apagar uma ferida
após o dilúvio, restou um papel nas mãos de sara
desdobrou-o sem pressa e começou a ler o primeiro poema do universo


*

(fotografia de sergei dmitrov)

26 comentários:

amigona avó e a neta princesa disse...

"Dali ouvia a poesia a chover".... soberbo!...Beijo para ti e obrigada pela partilha...

Edilson Pantoja disse...

Querida Alice, texto belíssimo!
Quanto ao livro, eu respondi nos comentários da semana passada (cap. 14). Em todo caso, não custa repetir: O livro só existe em Belém do Pará. O que posso fazer é, mediante acordo quanto a despesas de correio (que posso verificar), enviar-te um exemplar, ok? Caso me autorizes, procurarei informação quanto a valores. Abraço e obrigado! Qualqauer coisa, estou na recepção do Albergue.

isabel mendes ferreira disse...

excelente. não posso dizer mais nada. tudo fica por dizer....

beijo.

Medusa Azul (Zuli) disse...

Querida Alice,

vim molhar-me na [tua] chuva de poesia.. :)

acho que tens razão..
preciso mesmo de mais cafeína!
mas entre essa necessidade e as insónias.. 'venha o diabo e escolha'! ;)

beijinhos!

espero que estejas bem :)

joão marinheiro disse...

Olá Alice, sempre cativantes as tuas palavras, gosto de atracar a este teu porto sentido o meu velho barco de memórias e perder-me a ler-te...Gosto especialmente do "Primeiro Poema do Universo", esse, e fazes bem resguardar-lo de leituras cobiçadas, tem forçosamente de ser o mais puro, o mais belo...
abraço em mares tranquilos

Anónimo disse...

Alice, estou mesmo querendo, é que você e Janaina, conheçam uma o trabalho da outra (vocês não sabem o que estão a perder). Acho que a sensibilidade de vocês é muito parecida. Quando a mim amiga, estarei sempre aqui risonho deixando sua "poesia a chover" sobre meus cabelos e meu telhado de sapé. Quem sabe assim respinga-me um bocado de talento! Grande Abraço,
Diovvani.

Anónimo disse...

Ola, aqui as estrelas já começaram a brincar no céu, ai o mundo de Morpheus já esta distante...

“dali, ouvia a poesia a chover”

O paradigma da sua escrita causa dor no meu pensamento, poesia corrente, forte, de uma maneira tão firme e leve que voa como se fosse leve como espuma, uma poesia intrínseca no tempo, escreves de um jeito polido que chega a assustar.

Tu foi uma achado, uma perola rara, fico feliz por ter encontrado e por poder ler tudo que escreves, por isso agradeço.

Minhas palavras para tu são simples perante o estado que me deixas sua poesia verdade.

Ótima noite e lindo dia.

:*

Eli disse...

Sabes... sinto um certa segurança nas tuas palavras, mesmo que às vezes possa parecer o contrário!

Olha... eu não estou em Viseu, mas será sempre a Minha cidade, obrigada pela atenção!

:)

porfirio disse...

:
aqui
a
poesia
sempre
sempre
a
chover
.

bjo
,
boa noite
e
dorme bem!

pexeseco disse...

Boa Noite querida Amiga!
Já vou mexendo a barbatana,B'rigado
Adorei aquilo que li...Lindo!
Bjs:0)

Vica disse...

Obrigada pela visita. Muito lindo teu poema. Beijos.

nosthegametoo disse...

Tem um meio belo com palavras.

kikas disse...

A tua forma de escrever é expectacular e agora vejo que temos aqui alguem que sabe imaginar.
Gostei do desenrolar da historia, espero pelo proximo capitulo.
Bjinhos

Joaquim Amândio Santos disse...

fluída como se exige a verbe exalada por este pedaço de prosa poética.

sempre preferi a dor à anestesia.

Vanda disse...

Ali, aqui te deixo o meu obrigada pelas tuas palavras!

e o meu sorriso.

e a vontade, feita de prazer, de te ler sempre!

Beijo

Van

Susie disse...

Voltei, minha querida. Muito cansada. Mas renovada. Espero-te bem.
Um beijo

isabel mendes ferreira disse...

tu podes. tudo. rebolar tb. e continuar a escrever. assim....!



beijo.

Anónimo disse...

A erosão mora também nos nossos dedos, olhos, póros. A erosão mora também nos nossos corpos temporais, misto de começo e espera por fim.
As lembranças, as fotografias-imagens-estáticas, misturam-se ao pulsar do sangue nosso e ganham movimento. Fechamos os olhos, abrimos cuidando-violando nossos reservatórios de sorriso e pezar, e encontramos aquele panorama em lacunas do nosso passado, daquilo nosso já conhecido, e através dessa nossa necessidade de construir coisas novas, a erosão atravessa nossos póros e maculam as lembranças.
Eu tenho medo do retorno e do peso da saudade, mas sempre recorro à essa possibilidade de me encontrar antiga, para entender os rumos que dei, as minhas subtrações, as minhas sensações de pedaços faltando. Esse corpo meu, erosão-chuva-enchente-lágrimas, é a maior traça e o mofo certo para corroer-violar o reservatório das minhas próprias lembranças.
Encantada estou com seus gestos-palavras. Encantada entrei, encantada me retiro... Curiosa e olhos fixos sempre estarei ao fazer minhas revisitações.

Beijos

Janaína Calaça

Anónimo disse...

Retorno ao seu nicho, trazendo flores e agradecimentos pelo poema ofertado, pelas linhas douradas despejadas em meu papel virtual de quinta.
Guardei seu poema, entre as coisas mais queridas, entre as páginas amigas, entre tudo que considero sagrado. Tenho um hábito infantil de guardar no fundo das gavetas os bens que só eu conheço o valor. Todos os poemas, contos, textos dos amigos, que prenderam meus olhos, mexeram minhas mãos e que fizeram minha boca salivar, estão guardados no meu canto de madeira simples, mas resplandecendo altar.
Guardo o poema do Diovanni, que juntou nós duas no mesmo espaço-tempo-limite-branco, junto com o seu poema, junto com os poemas de amigos queridos, junto de todas as palavras que me provocam lágrima, riso, gozo, desejo, pezar.
Deixo um abraço apertado, olhos quietos, sorriso sincero e um obrigada para se guardar.

Beijos,querida

Jana

Dani disse...

Tudo o que diga, vem apenas macular o que escreves. Muito bonito. Fico pendurado e espectante.

Beijinhos

Sofia disse...

Tu escreves bem!

um bj

ps. ohhh pq n publicas o primeiro poema??

José Pires F. disse...

Recebi uma dica de além-mar par te visitar.
Gostei como gosto de quem tem gosto pela escrita e usa o blog para nos dar a conhecer as suas histórias.
:)

Abraço.

Alexandre o Grande disse...

Bonito!
Já estou a imaginar a última parte de vidas vazias:

O Hugo salta para cima da Sara durante 50 dias seguidos e limpam todas as lágrimas com a lingua. ;)

Beijos Licinha

inBluesY disse...

apenas me resta ler-te em silêncio ...
1 BJ

Vanda disse...

Querida Alice, percebes agora porque nunca te perdoaria a partida? :)

Vês tudo quanto aí tens para dar?
Sentes o quanto gostamos de te ler?

És grande, Alice!

e uma mulher com um coração enorme!

sempre atenta aos outros, que se entrega (n)as palavras mas tambem às pessoas!

Vá, querida que nunca te falte a luz, a veia e esse olhar!!!

Um beijo com muito carinho

Van

margarida disse...

Madrugada profícua!