2006-05-27

sem palavras

(fotografia de elisandra amoedo)
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*
esta noite não parece de abril. o dia, sim. clareou e sorriu toda a tarde. mas a noite não. foi um conjunto de tardes a anoitecer o meu dia. recebi uma má notícia. avisaram-me que as palavras tinham adoecido. mandaram-me uma mensagem de palavras já contaminadas. e de como o vírus se tinha propagado em pouquíssimas horas. enquanto a noite apagava a tarde de sol no jardim

procurei fixar a manhã. a criança que entrava em casa a explodir de energia. os restos dos jogos no chão da sala. os pratos a escorrer na distância do almoço. a bola a descansar dos golos sofridos. os mesmos papéis à deriva nos movéis. e tentei alhear-me. fingir que era um erro do calendário. imaginar a natureza sem amor no coração das flores*

mas insistiram. garantiram-me que era uma doença venérea. dessas que os genes transportam como formigas a atravessar as veias. num mecanismo pedófilo intratável. e depositaram palavras enfermas na minha janela. percebi finalmente a falha do tempo. eram vários os dias a entardecer a mensagem. eram semanas diante dos meus olhos. quase meses. ao cair da noite.

enganei o estômago com um jantar de cervejas. e saí para a cafeína da rua. fui às urgências saber dos internamentos. mas a fila de palavras não me permitiu estacionar o carro. o ar estava saturado de sílabas ocas. as vírgulas caíam entre aspas. falavam de quarentena em surdina. os verbos apodreciam nas macas. os simpósios fugiam dos médicos. o trânsito soletrava. e segui um dicionário perdido.

fui do hospital para a cadeia. afinal, meteram as palavras atrás das grades. chamaram-lhe prisão preventiva. advogaram penas de identidade e residência. marcaram o julgamento. mas as leis apresentaram os primeiros sintomas. os tribunais tentaram socorrer a justiça. mas era muito tarde. eles não sabiam das horas em cada minuto. e as palavras morriam. a infecção derrubava-as. não havia vacinas. não havia sol. não havia água.

a saúde pereceu na manhã. o coração das flores encolheu. o amor escorria distante. o jardim descansava. e regressei à infância. despertei a criança. jogamos à bola. com a energia dos papéis. marcamos golos na doença. e curamos as palavras. eles vieram premiar-nos...

*

18 de abril de 2006
*o que é a natureza, d.?
"a natureza é o amor no coração das flores"

13 comentários:

da. disse...

...e se no coração das flores houver apenas pólen?...e se tudo for apenas aquilo que é sem mais?...e se uma rosa florescer apenas porque floresce...sem porquê...o que seria do amor?...

isabel mendes ferreira disse...

mesmo quando o amor escorre distante tu enches o poço da distância com o fogo descritivo das emoções.


que venham mais flores.


beijo. Li.

Vanda disse...

A doença das palavras escorre das mãos que as escreve...

gosto de ti.como da musica.

sem macula.Ambas.

um beijo
Van

Alma de Poeta disse...

Alice...e nas tuas palavras embrenhei meus sentimentos.
Ten so dom da escrita por isso te dou sinceros parabéns.
Gostei de ti encontrar

isabel mendes ferreira disse...

hoje faço minhas as palavras da Couvinha P.....espero que ela não se zangue...!

___________________e a saudade Li faz-nos cabelos brancos e rugas na alma...e a "menina" é ainda mt menina...
___________________um beijo matinal..

Alberto Oliveira disse...

...
quis dizer
por palavras ainda-não-nascidas
que o melhor ainda estava para vir
que o sorriso das crianças
era de esperança que não se sonhava a cor
mas que decerto seria forte e viva
que o amor perfeito teria o perfume de mil paraisos floridos
as delícias de oásis inventados
a loucura que não teria fim
que


... mas as palavras teimavam em não sair. Parou. Mais tarde voltaria; jurou a si próprio.

amigona avó e a neta princesa disse...

Mas o calendário está doente, estamos em maio e não Abril! pode ser que assim as palavras se possam soltar e a Vida torne a entrar...
Bom domingo querida e obrigada pelo texto que tornou este meu dia mais belo!

Anónimo disse...

Alice, li seu texto e o que dizer da forma interessante que você resignificou a linguagem e da forma como você criou carne para as palavras. As palavras, neste seu conto, se metamorfosearam no próprio homem, em vez de apenas figurarem como produto e criação do mesmo. A linguagem ganha sua autonomia, sofre com o cotidiano sem polimentos e antecede a própria idéia do homem. A linguagem, no seu conto, ganhou autonomia, voz e carne. INTERESSANTÍSSIMO!

Menina, surpresa sempre boa ler suas linhas.

Beijos,
abraço forte,
Jana

P.S: Passe no Brutti. Hoje tem texto meu por lá. "R$ 9,90". Espero sua visita.
Cuide-se, viu!

http://naselva.com/brutti

Beijos

Anónimo disse...

Singelas palavras para as palavras. belo texto. Tudo de bom.

Eli disse...

Ei... tantas ideias condensadas...

Continuas em grande nas palavras!

:)

nosthegametoo disse...

Tem um talento excelente.

Isto lembrou-me de minha Tia.

Paulo Castro disse...

Alice:
e eu fiquei feliz de encontrar vc lá no meu, e um amor é sim um clítoris que pulsa
e mordo:
www.naselva.com/paulo
vamos fazer dupla ?
bjs
pc.

Anónimo disse...

Alice,

desisto do msn. Pelo menos por hoje, desisto. Sim, eu já conhecia este texto mas nunca me canso de ler você.
Beijos beijos, claudia