2006-10-30

uma semana depois




derrama o teu leite
na borda do parágrafo
sem abreviaturas
nem pontos cardeais
vale sempre a pena chorar
para aumentar os lagos
na berma dos teus olhos
duas luas

o não
meu amor
é uma rotunda
no meio do deserto
se agora fosse antes
davas três voltas comigo
e bebias do mais fresco oásis
tu és sal para a minha sede


*


(fotografia de almor loucão)

2006-10-23

faz hoje dois anos





(fotografia de autor desconhecido)

2006-10-19

a indiferença




a tua ausência é uma casa tão fria
que tenho os ossos na ponta da língua
não são os ossos do meu corpo
que habitam este lugar em chamas
são os ossos dos meus mortos
foi preciso perder-te para ter
na minha boca um caixão a arder
se a indiferença tem mau hálito
escrever é uma questão de higiene
fecho os olhos e vai a enterrar
um beijo que mata devagar



*

(fotografia de ricardo tavares)

2006-10-09

da obsessão




vens aqui. todos os dias. não te identificas. escreves insultos. fazes acusações. seleccionas as palavras. o calão é uma linguagem. uma forma de comunicar. um sintoma. o ciúme bem podia ser uma casa de parasitas. bichos gordos imovéis. presos na sua própria banha. mas não o teu. mais cego que invisual. hás-de ler esta carta. na diagonal. ou atravessada. preferia que ouvisses. escuta. és uma mulher. é tempo de vindimas. os homens pisam as uvas. debaixo dos pés. no lagar. menos o poeta. entende isto. para ele. o teu corpo é uma encosta. o teu peito uma ramada. quando lhe toca. é vento contra as folhas. da tua pele. e em cada cacho. dos teus seios. arredonda as formas. pisa as uvas. debaixo das mãos. debaixo da boca. bebe o vinho. ainda quente. ainda doce. fica tonto. embriagado. quando chega ao lagar. só pensa em morrer. só pensa em matar. quando o vinho fermenta. no meio das pernas dele. no meio das tuas pernas. já não pensa. sobe sobe sobe. pelas vinhas acima. até arrancar as folhas. até sangrar os cachos. as uvas todas. numa só colheita. numa só semente. para reproduzir as videiras. tudo o que lhe importa. é o mata bicho. e ser um grande escritor.


*

(quadro de artur boal)

2006-10-06

parabéns, alberto




foi no desmaio de maio que ele começou a fazer o amor. com a lua grávida e as mãos cheias de ternura. assomou à porta descalço. os dedos em órbita denunciando a vertigem. o olhar pesado junto à calvície do esperma. um milhafre algemado nas veias. um pergaminho enrolado ao pulso.

ela chegou no fim do poema. ele disse morria nas vírgulas do teu cabelo. ela não ouviu o resto. pensou que era o vento. costuma morrer na pontuação. mas não era. ele arrumou as palmas nas calças e saiu. não a viu. anoitecia-lhe já o corpo. cinco meses. e um dia. depois. amanheceu.


*

(fotografia de augusto peixoto)

2006-10-02

da inocência



a felicidade custa duzentos pesos. como um mapa. num olho o medo. no outro a esperança. ela estava a comprar cigarrilhas. mais caras que a felicidade. por causa do suplemento. a baunilha. ele estava pendurado na porta da loja. usava calções. encarnados. uma caixa de madeira. pequena. parecia uma caixa de engraxar sapatos. nenhum boião de graxa lá dentro. três garrafas vazias. sujas. mais nada. chamou-a: senhôra. num "ô" arrastado. "senhôora". ela virou-se. ele pediu caramelos. não haviam na loja. só vendiam tabaco. falso. postais azuis. impróprios para oferecer em branco. rum. confiscado no aeroporto. no meio dos olhos dele. o desalento. fechou o do medo. abriu o da esperança. e pediu coca cola. não havia na loja. ali no bar senhôra. o eco do "ô" na compaixão dela. a rua era escura. ela receou o caminho. mas o desalento. e atravessou a rua. mais quatro pares de olhos. cinco putos. cada um para um dedo de uma mão. cinco coca colas. uma para cada um. cinco sorrisos. cinco sóis na escuridão da rua. cinco beijos. tão bonitos. tão puros. cinco braços no ar. a desenhar o adeus. cinco dedos vazios. na outra mão dela.


*

(fotografia de alba luna)